Tudo está
no som. Uma canção.
Raramente uma canção. Deveria
ser uma canção - com
pormenores, vespas,
uma genciana - algo
imediato, tesouras
abertas, olhos
de mulher - centrífuga
ao despertar, centrípeta
William Carlos Williams, Antologia Breve, Assírio & Alvim, pág. 73
( selecção e tradução - José Agostinho Baptista)
Pouco me importa.
Pouco me importa o quê? Não sei: pouco me importa.
Alberto Caeiro, Poemas Inconjuntos
O contrário da matéria
não é o espírito.
O contrário da matéria
não é a anti-matéria.
O contrário da matéria
é o olhar.
Pedro Mexia, Duplo Império
Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva
Não faz ruído senão com sossego.
Chove. O céu dorme. Quando a alma é viúva
Do que não sabe, o sentimento é cego.
Chove. Meu ser (quem sou) renego...
Tão calma é a chuva que se solta no ar
(Nem parece de nuvens) que parece
Que não é chuva, mas um sussurrar
Que de si mesmo, ao sussurrar, se esquece.
Chove. Nada apetece...
Não paira vento, não há céu que eu sinta.
Chove longínqua e indistintamente,
Como uma coisa certa que nos minta,
Como um grande desejo que nos mente.
Chove. Nada em mim sente...
Fernando Pessoa, Cancioneiro
Canto V - 60
Mas não sejamos pessimistas. Até os pintores
dizem estar a surgir, por estes tempos,
um cesto cheio de novas cores.
Certos tratamentos químicos contemporâneos têm sido
experimentados à luz do sol,
e esta parece finalmente perceber o progresso.
Em pleno século XXI já não fazem sentido astros teimosos
e autónomos.
Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem À Índia, Caminho, pág 229.
Quem não me deu Amor, não me deu nada.
Encontro-me parado...
Olho em redor e vejo inacabado
O meu mundo melhor.
Tanto tempo perdido...
Com que saudade o lembro e o bendigo:
Campos de flores
E silvas...
Fonte da vida fui. Medito. Ordeno.
Penso o futuro a haver.
E sigo deslumbrado o pensamento
Que se descobre.
Quem não me deu Amor, não me deu nada.
Desterrado,
Desterrado prossigo.
E sonho-me sem Pátria e sem Amigos.
Adrede.
Ruy Cinatti, O Livro do Nómada meu Amigo
Cansa sentir quando se pensa.
Fernando Pessoa, Cancioneiro
(9-11-1932)
Quero que tudo seja unívoco e tangível.
Procuro que todas as coisas possuam o rumor da eficácia
e confluam num único momento de plural sinergia
para a exortação, a exaltação, o extremo.
Quero que tudo seja decisivo e incontornável como uma árvore.
Procuro que tudo siga o fluxo da imortalidade
e habite a única vontade possível,
a vontade dos homens.
Quero que tudo seja inexorável e autêntico.
Procuro que tudo se firme na infinidade,
a música e o triunfo,
a rebeldia e a luz.
Quero que tudo seja abrangente e divino.
Procuro que tudo seja simultaneamente plausível
e impossível, mais do que esperança, paixão,
mais que paixão, amor.
Deus escreve direito por linhas tortas
Sophia de Mello Breyner Andresen, O Búzio de Cós
Mantinha um fascínio indeciso
uma impressão capaz de proteger
tanto a ordem como a rebeldia
sozinha perante pedidos
agitações e escombros
desligada há muito de motivos
José Tolentino Mendonça, Baldios, Assírio & Alvim, pág. 72
Todos os pássaros sossegaram.
As crianças desceram das árvores, guardaram os jogos,
recolheram a casa. Levanto a cabeça e deixo a voz deambular
por dentro deste silêncio de água e de estrelas.
A noite está próxima.
Deixo o corpo escorregar na poeira luminosa.
Acendo um cigarro, ponho-me a falar com o meu fantasma.
Longe daqui, a cidade enfeitou-se com os seus crimes de néon,
com suas traições... ouço hélices de barcos,
motores... quando um rosto esvoaça ao alcance da mão.
al berto
Sob o olhar atento de António Ramos Rosa, um poema de Pedro Tamen sobre a instantaneidade da palavra e a imediatidade do instante.
E agora: a tua pele.
Revejo: é manso o mar.
E sei que o vento corre e que por ele
se colam no teu corpo lembranças de luar.
Descanso: os teus cabelos.
Entrego: já é dia.
Os caules são serenos, e ao vê-los
no côncavo da mão o sol nascia.
António Ramos Rosa, Incisões Oblíquas, Caminho, pág. 89.
Herberto Helder, 82 anos de vida. Homenagem ao Poeta.
Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.
Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
- a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.
E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.
- Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
- E o poema faz-se contra o tempo e a carne.
dá-me a alegria, a sem razão nenhuma que se veja,
dou-te alegria, a sem caminhos na clareira,
a de nenhum sinal em terra nua.
dá-me a tristeza, a toda certa sem fronteiras.
dou-te tristeza, a cinza em cinza devastada,
a oiro no silêncio debruada.
por águas me verti, por rios, sementes.
de terra me vestes, a sombra do dia,
o sítio das flechas no corpo, na árvore.
no sossego das chuvas me reparto.
ficas no escuro, nos ramos nos frutos,
embrulho novelo a desajeito.
a porta quase aberta diz que me recebes,
quase fechada diz que me visitas.
assim te visite, assim te receba.
nenhuma palavra que o gesto não faça.
de águas me vista, em terra me vertas.
no corpo das flechas o sítio, nos rios.
António Franco Alexandre, Poemas, Assírio & Alvim, pág 290
Filhos dum deus selvagem e secreto
E cobertos de lama, caminhamos
Por cidades,
Por nuvens
E desertos.
Ao vento semeamos
O que os homens não querem.
Ao vento arremessamos
As verdades que doem
E as palavras que ferem.
Da noite que nos gera, e nós amamos,
Só os astros trazemos.
A treva ficou onde
Todos guardamos a certeza oculta
Do que nós não dizemos,
Mas que somos.
José Carlos Ary dos Santos (1937 - 1984)
Poema de Ángel González ( 1925-2008). Lindo!
Si yo fuera Dios
y tuviese el secreto,
haría
un ser exacto a ti;
lo probaría
(a la manera de los panaderos
cuando prueban el pan, es decir:
con la boca),
y si ese sabor fuese
igual al tuyo, o sea
tu mismo olor, y tu manera
de sonreír,
y de guardar silencio,
y de estrechar mi mano estrictamente,
y de besarnos sin hacernos daño
-de esto sí estoy seguro: pongo
tanta atención cuando te beso;
entonces,
si yo fuese Dios,
podría repetirte y repetirte,
siempre la misma y siempre diferente,
sin cansarme jamás del juego idéntico,
sin desdeñar tampoco la que fuiste
por la que ibas a ser dentro de nada;
ya no sé si me explico, pero quiero
aclarar que si yo fuese
Dios, haría
lo posible por ser Ángel González
para quererte tal como te quiero,
para aguardar con calma
a que te crees tú misma cada día,
a que sorprendas todas las mañanas
la luz recién nacida con tu propia
luz, y corras
la cortina impalpable que separa
el sueño de la vida,
resucitándome con tu palabra,
Lázaro alegre,
yo,
mojado todavía
de sombras y pereza,
sorprendido y absorto
en la contemplación de todo aquello
que, en unión de mí mismo,
recuperas y salvas, mueves, dejas
abandonado cuando -luego- callas...
(Escucho tu silencio.
Oigo
constelaciones: existes.
Creo en ti.
Eres.
Me basta ).
Nas horas baças que pedem um novo renascer, volto-me na direcção do "sítio geográfico vital gravado nos cromossomas". Gesto que me faz sentir, repito-o, que as fragas são firmes, as árvores nascem, a lua é bela, os homens são promessas. "E sinto Paz".
Não sei se vês, como eu vejo.
Pacificado,
Cair a tarde
Serena
Sobre o vale,
Sobre o rio,
Sobre os montes
E sobre a quietação
Espraiada da cidade.
Nos teus olhos não há serenidade
Que o deixe entender.
Vibram na lassidão da claridade.
E o lírico poema que me acontecer
Virá toldado de melancolia,
Porque daqui a pouco toda a poesia
Vai anoitecer.
Miguel Torga
Chaves, 6 de Setembro de 1986
Uma borboleta no chão
Uma brisa suave
Um raio de sol
Suficientemente fino para te fazer estremecer
Suficientemente longo para te fazer feliz
Aqui descansamos, livres e vazios
Neste fim de estação
Neste abraço cálido e final de expansão
Os dedos são lírios que saem das mãos
Esguios, enigmáticos símbolos transfigurados
Planta, animal, estrela diurna
E o bafo quente que os envolve
Porque a vida é
Uma erva, uma explosão, um beijo, uma agonia
Um tempo que nos visita de raspão
E ainda assim
Persistimos na ternura das horas
No prazer de uma boca que se abre
No anoitecer dos cabelos em repouso
Ainda assim persistimos
Acordando todas as manhãs
E pela tarde
O riso volta de novo às sombras do verão
Pássaros incorpóreos dos sentidos
Logo empoleirados sobre estes corpos inclinados
Porque o tempo
Essa areia esquiva onde brincam os astros
Desdenha dos nossos esforços humanos
E volta sempre
Com o presságio daquela oculta maré primordial
Ainda uma vez mais
A palavra sobre as águas
Os sons ancestrais guardados na carne
Que despontam como trigo estival
Enquanto revelam o prefácio do nosso existir
José Ferreira
sophia de mello breyner andresen