(...) Neste preciso momento, há biliões de organismos neste planeta a jogar às escondidas. Mas para eles não se trata apenas de um jogo. É uma questão de vida ou de morte. Não se enganarem, não cometerem erros, tem sido de uma importância primordial para todos os seres vivos deste planeta desde há três biliões de anos; por isso, estes organismos desenvolveram milhares de formas diferentes de descobrir como é o mundo em que vivem, distinguindo os amigos dos inimigos, os alimentos dos companheiros e ignorando, em grande medida, o resto. É para eles importante não estarem mal informados acerca destas matérias – mas, regra geral, não se dão conta disto. Eles são os beneficiários de um equipamento delicadamente concebido para captar bem o que interessa, mas quando o seu equipamento funciona mal e capta as coisas mal, não têm, regra geral, recursos para se darem conta disto, quanto mais para o lamentarem. Eles limitam-se a prosseguir, inconscientemente. A diferença entre a aparência e a realidade das coisas é um hiato tão fatal para eles como o pode ser para nós, mas eles não se apercebem, em grande medida, disso. O reconhecimento da diferença entre a aparência e a realidade é uma descoberta humana. Algumas das outras espécies (alguns primatas, alguns cetáceos, talvez até algumas aves) reconhecem, aparentemente, o fenómeno da “crença falsa” – o engano. Mostram alguma sensibilidade aos erros dos outros e talvez até alguma sensibilidade aos seus próprios erros enquanto erros, mas não têm a capacidade de reflexão necessária para refletir nesta possibilidade, razão pela qual não podem usar esta sensibilidade para conceber deliberadamente correções ou aperfeiçoamentos nos seus próprios instrumentos de busca e dissimulação. Esse tipo de superação do hiato entre a aparência e a realidade é um ardil que só nós, os seres humanos, dominámos.
Somos a espécie que descobriu a dúvida. (…) As outras criaturas são muitas vezes visivelmente inquietadas pelas suas próprias incertezas acerca destas mesmas questões, mas, porque não podem, na verdade, colocar-se a si mesmas estas perguntas, não podem articular, para si próprias, os seus dilemas, nem tomar medidas para aperfeiçoar o seu controlo da verdade. Estão encurraladas num mundo de aparências, fazendo com elas o melhor que podem, raramente se preocupando (se é que alguma vez o fazem) com a questão de saber se a aparência corresponde à realidade. (...)
Daniel C. Dennett, Fé na Verdade – in Disputatio, n.º 3, novembro de 1997
(retirado do Manual Escolar 2.0)
Daniel Dennett, filósofo norte-americano contemporâneo, é conhecido pelas suas investigações em filosofia da mente, filosofia do conhecimento e filosofia da biologia.
Através duma escrita precisa e clara torna acessível o conhecimento à generalidade dos leitores, ultrapassando o hermetismo que encontramos em outros.
A Ideia Perigosa de Darwin é um bom exemplo. Há medida que avançamos na leitura, dificilmente escapamos à perigosa ideia que é Darwin.
Se tivesse de atribuir um prémio à melhor ideia de sempre, o vencedor seria Darwin, à frente de Newton, de Einstein e de todos os demais.
Um livro que interroga as nossas crenças fundamentais. A ler com atenção.
sophia de mello breyner andresen