É uma obra com vinte e três histórias. A primeira intitula-se “Estilo”. Um exercício sobre a forma de arrumar o vazio. O método, quando bem aplicado, ao quotidiano por exemplo, desembaraça-nos da “desordem estuporada da vida”. Portanto, crie o seu Estilo. Assente na arte da fuga, com passos, o Estilo permite-nos caminhar para o essencial: o afastamento. Quem se afasta, compreende. Aplique-o todos os dias. O segredo está na repetição. Compassos de movimento circular. Inexoravelmente.
“É forçoso encontrar um estilo. Seria bom colocar grandes cartazes nas ruas, fazer avisos na televisão e nos cinemas. Procure o seu estilo, se não quer dar em pantanas. (...). Consegui um estilo. Aplico-o à noite, quando acordo às quatro da madrugada. É simples: quando acordo aterrorizado, vendo as grandes sombras incompreensíveis erguerem-se no meio do quarto, quando a pequena luz se faz na ponta dos dedos (...) ...Começo a fazer o meu estilo. Admirável exercício, este. Às vezes uso o processo de esvaziar as palavras. Sabe como é? (...) Pego numa palavra fundamental: Amor, Doença, Medo, Morte, Metamorfose. Digo-a baixo vinte vezes. Já nada significa. É um modo de alcançar o estilo. (...)".
profano, prático, público, presto, profundo, precário,
improvável poema,
contudo
nem eu estava à espera dos bárbaros que viriam devastar
a terra,
porque éramos inocentes,
nós que só queríamos silêncio,
e a voz diria que se fosse preciso traziam Deus,
e é assim possível que trouxessem qualquer espectáculo com
cristos nus e saltimbancos de feira,
Herberto Helder, Servidões
De regresso à terra, lugar de nascimento da poesia e do "poema contínuo".
" Ninguém tem mais peso que o seu canto.
A lua agarra-o pela raiz,
arranca-o.
Deixa um grito que embriaga,
deixa sangue na boca.
Que seja a demonia: - a arte mais forte de morrer
pela música, pela
memória."
Herberto Helder, Poesia Toda, Assírio & Alvim, p.543.
Sempre. Dormiram, acordaram, esgotaram-se. Vivem na escuridão, no vácuo. Têm mãos. Respiram sombriamente sobre as mãos.
Depois param.
Então criam a festa. As forças irrompem do fundo; fazem vacilar o fino e o precário equilíbrio da terra. Para lá da lei abolida, as coisas tornam-se vísiveis, com uma intensidade, uma transparência anterior: sinais, vozes, tudo. Como se o mundo inteiro curasse uma ressaca no corpo de cada um, e essa lípida desordem deixasse o coração escorrido.
É a festa dos homens.
Herberto Helder, Passos em Volta
Um profundo exercício sobre a vida e a norma. Um poema inteiro, feito de cinzas e restos. Debaixo da pele, despida de ismos, o poeta deambula entre as trevas e a luz e, no gesto, constrói a esperança de um território primordial - o eu nu. Uma inquietação levada à alma. Sem disfarces: " Esta é a minha Elegia".
e só agora penso:
porque é que nunca olho quando passo defronte de mim
mesmo?
para não ver quão pouca luz tenho dentro?
ou o soluço atravessado no rosto velho e furioso,
agora que o penso e vejo mesmo sem espelho?
- cem anos ou quinhentos ou mil anos devorados pelo
fundo e amargo espelho velho:
e penso que só olhar agora ou não olhar é finalmente
o mesmo
Herberto Helder, A Morte Sem Mestre, Porto Editora, p.16
Há palavras que requerem uma pausa e silêncio.
Herberto Helder, Poesia Toda, Assírio & Alvim, pág. 285
Servidões. E visões e vozes. Mas sem alma, nada há a salvar. E a música, a música, quando, como, em que termos...
e a música, a música, quando, como, em que termos
extremos
a ouvirei eu,
e ela me salvará da perda da terra, águas que a percorrem,
tão primeiras para o corpo mergulhado,
magníficas,
desmoronadas,
marítimas,
e que eu desapareça na luz delas -
só música ao mesmo tempo nos instrumentos todos,
curto poema completo,
com o autor cá fora salvo no derradeiro instante
numa poalha luminosa?
Servidões, Herberto Helder, Assírio & Alvim, p. 55.
V
Esta linguagem é pura. No meio está uma fogueira
e a eternidade das mãos.
Esta linguagem é colocada e extrema e cobre, com suas
lâmpadas, todas as coisas.
As coisas que são uma só no plural dos nomes.
- E nós estamos dentro, subtis e tensos
na música.
(...)
Herberto Helder, Poesia Toda, pág. 77.
Herberto Helder, 82 anos de vida. Homenagem ao Poeta.
Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.
Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
- a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.
E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.
- Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
- E o poema faz-se contra o tempo e a carne.
saber ninguém pode
o que o lago esconde
em seu fundo seio.
assim guardes tu
o que saibamos de outros.
melhor inda: esquece-o.
Herberto Helder, Poemas Ameríndios, Assírio & Alvim ( 1997), p. 60
Desde a obscuridade
de tudo que tudo
é inocente. Nunca se pode ver a noite toda de súbito.
Herberto Helder
Se há aqui excesso de nomes e referências, sejam eles tomados como montagem, concebida num apoio cultural estilisticamente irónico.
Herberto Helder
Fecharia os olhos sob os anéis dos astros e entre os violinos e os fortes poços da noite, descobriria a ardente ideia da minha vida.
Herberto Helder
Mexo a boca, mexo os dedos, mexo
a ideia da experiência.
Não mexo no arrependimento.
Pois o corpo é interno e eterno
do seu corpo.
Não tenho inocência, mas o dom
de toda uma inocência.
E lentidão ou harmonia.
Poesia sem perdão ou esquecimento.
Idade de poesia.
Herbero Helder, Poesia Toda
Amo devagar os amigos que são tristes
com cinco dedos de cada lado.
Os amigos que enlouquecem
e estão sentados,
fechando os olhos,
com os livros atrás a arder
para toda a eternidade.
Não os chamo,
e eles voltam-se profundamente
dentro do fogo.
- Temos um talento doloroso e obscuro.
Construímos um lugar de silêncio.
De Paixão.
Herberto Helder, Aos Amigos, in Revista Inútil
sophia de mello breyner andresen