Sob um grande céu pardacento, muma grande planície arenosa, sem caminhos, sem verdura, sem um cardo, sem uma urtiga, encontrei alguns homens que caminhavam curvados.
Cada um deles levava às costas uma enorme Quimera, tão pesada como um saco de farinha, ou de carvão, ou como o equipamento dum soldado romano de infantaria.
Mas a fera monstruosa não era só um peso inerte; pelo contrário, envolvia e oprimia o homem com os seus músculos elásticos e poderosos: agarrava-se, com duas grandes garras, ao peito da sua montadura; e a cabeça fabulosa encimava o frontal do homem, como um daqueles horríveis capacetes com que os antigos guerreiros esperavam aumentar o pavor do inimigo.
Interroguei um desses homens, e quis saber para onde iam assim. Respondeu-me que nada sabia, nem ele, nem os outros; mas que, evidentemente, iam para qualquer parte, pois que eram impelidos por um impulso invencível de caminhar.
Charles Baudelaire, O Spleen de Paris - Pequenos Poemas em Prosa (1991, pág 21), Tradução de António Pinheiro de Guimarães, Relógio d´Água.
Influenciou gerações. Enquanto criador de linguagens, construiu mundo(s). Viveu a vida preparando-se para a morte. Sempre com muito humor. Um filósofo, portanto.
"Há duas maneiras de passear num bosque. Uma é experimentar um ou vários caminhos (...); a segunda é caminhar de modo a descobrir como o bosque é e por que são acessíveis certas veredas, e outras não."
Seis passeios nos bosques da ficção
A Água
No café trazem-me um copo com água
como se ele resolvesse todos os meus problemas.
É ridículo — penso — não há saída.
No entanto, depois de beber a água
fico sem sede.
E a sensação exclusiva do organismo
acalma-me por momentos.
Como eles sabem de filosofia — penso —
e regresso, logo a seguir, à angústia.
Gonçalo M. Tavares
A conversa com a filha, Mónica Baldaque, permite saber de uma mulher e de uma escritora. Que são uma, como se verá. Agustina está retirada desde 2006. Deixou de escrever. Como olharia para a maneira como olhamos para ela?
Rindo-se. Seguramente.
Como é que vamos apresentar Agustina? A genial?, a sem medo?, a perversa?, a barroca (assim lhe chamava Óscar Lopes)? Estes são alguns dos epítetos mais comuns.
Todos lhe servem. O que é para além disso talvez não tenha definição. Verdadeiramente, aquilo que ela é está no riso.
No riso?
É uma das características fundamentais da minha mãe, da vida dela e do estar dela com os outros. O riso não tem que ver com a troça. Tem que ver com um segredo, com o mistério, com o estar numa outra dimensão. Há um provérbio judaico que diz: “O homem pensa, Deus ri.” Acho que aí a minha mãe está perto de Deus. O riso dela é como se fosse o riso de Deus.
(...)
De onde vem este gosto pelos vestidos? Um dos aforismos mais famosos: “O sucesso não vale tanto quanto um vestido novo.”
Tem razão.
Não era uma boutade?, acreditava nisso?
Absolutamente sim! Há tempos foi lá a casa uma pessoa visitá-la. Muito ternurenta, com aquele ar “coitadinha da senhora dona Agustina”. A mãe ouviu tudo, impassível. A senhora foi-se embora. A mãe: “Estava tão mal vestida!” [gargalhada]
Morre, aos 63 anos, o actor Robin Williams (21 de julho de 1951-11 de agosto de 2014).
Ó Capitão! meu Capitão! Finda é a temível jornada,
Vencida cada tormenta, a busca foi laureada.
O porto é ali, os sinos ouvi, exulta o povo inteiro,
Com o olhar na quilha estanque do vaso ousado e austero.
Mas ó coração, coração!
O sangue mancha o navio,
No convés, meu Capitão
Vai caído, morto e frio.
Ó Capitão! meu Capitão! Ergue-te ao dobre dos sinos;
Por ti se agita o pendão e os clarins tocam teus hinos.
Por ti buquês, guirlandas… Multidões as praias lotam,
Teu nome é o que elas clamam; para ti os olhos voltam,
Capitão, querido pai,
Dormes no braço macio…
É meu sonho que ao convés
Vais caído, morto e frio.
Ah! meu Capitão não fala, foi do lábio o sopro expulso,
Meu calor meu pai não sente, já não tem vontade ou pulso.
Da nau ancorada e ilesa, a jornada é concluída.
E lá vem ela em triunfo da viagem antes temida.
Povo, exulta! Sino, dobra!
Mas meu passo é tão sombrio…
No convés meu Capitão
Vai caído, morto e frio.
Walt Whitman
Sempre. Dormiram, acordaram, esgotaram-se. Vivem na escuridão, no vácuo. Têm mãos. Respiram sombriamente sobre as mãos.
Depois param.
Então criam a festa. As forças irrompem do fundo; fazem vacilar o fino e o precário equilíbrio da terra. Para lá da lei abolida, as coisas tornam-se vísiveis, com uma intensidade, uma transparência anterior: sinais, vozes, tudo. Como se o mundo inteiro curasse uma ressaca no corpo de cada um, e essa lípida desordem deixasse o coração escorrido.
É a festa dos homens.
Herberto Helder, Passos em Volta
- A nação é de todos. A nação tem de ser igual para todos. Se não é igual para todos, é que os dirigentes, que se chamam Estado, se tornaram quadrilha. Se não presta ouvido ao que eu penso e não me deixa pensar como quero, se não deixa liberdade aos meus actos, desde que não prejudiquem o vizinho, tornou-se cárcere. Não, os serranos, mil, cinco mil, dez mil, têm tanto direito a ser respeitados como os restantes senhores da comunidade. Era a moral de Cristo: por uma ovelha... Se os sacrificam, cometem uma acção bárbara, e eles estão no direito de se levantar por todos os meios contra tal política.
Aquilino Ribeiro, Quando os Lobos Uivam, 1958
Mas não estaremos nós a viver numa redoma, em círculo fechado, ignorando ou querendo ignorar a indiferença, o egoísmo, a estupidez de uma maioria narcotizada?
(Lisboa, 6 de Dezembro de 1923 - Lisboa, 9 de Agosto de 2013)
Diz-se, Lolita é o romance de Vladimir Nabokov. É. Deu-lhe o reconhecimento merecido. Mas intrigante e desconcertante é acompanhar as satíricas aventuras de Fogo Pálido. O texto - hipertexto - é um poema em 999 versos, seguido de uma série de comentários ao próprio poema. Na nota bibliográfica da edição que leio, Eduardo Prado Coelho refere:
Em Fogo Pálido, trata-se também de um jogo narrativo: partindo do comentário supostamente universitário de um longo poema vemos erguer-se um poderoso espaço de ficção que nos perturba, arrasta e permanentemente nos desconcerta.
Um jogo hermético que se constitui em paródia. Apesar de o Canto Dois ser o mais apreciado, transcrevo o início do Canto Um. Pelos pássaros.
Fui a sombra do ampelis despenhando-se
No céu falso da vidraça;
Fui a nódoa de um tufo de cinzas - e
Vivi sempre, fluí, no céu reflectido.
E também por dentro me dupliquei,
A minha luz, maçã pousada:
Desvelando a noite, deixarei o vidrado negro
Suspender os móveis acima do solo
E que delícia o nevão que veio cobrir
O meu pedaço de terra, erguendo-se
Levando cama e cadeira a pairar
Sobre a neve lá fora, na terra de cristal!
A neve que cai: cada floco que paira
Lento e informe, opaco e corredio,
Branco sujo na placidez do dia
E os lariços abstractos à neutral luz.
E então os dois azuis graduais
Quando a noite une o olhar ao visto,
E de manhã, diamantes de gelo
Exprimindo espanto: que esporas cruzaram
Daqui para ali, a folha nua do caminho?
Ler daqui para ali no código do inverno:
Um ponto, seta de regresso...Pé de faisão
De anilhada beleza, tetraz sublime
Que encontra o seu oriente no meu quintal?
(...)
Deambulando pelas teorias da recepção da obra literária, vou abrindo o terreno para cimentar as questões que me ocupam: Há uma leitura ideal? Há uma simetria perfeita entre o leitor e a obra?
Aceito de modo natural a proposta crítica de Fish- o que existe é a comunidade interpretativa- mas Barthes inquieta o pensamento quando opta por matar o autor e fazer nascer o leitor. A ser assim, e segundo a perspectiva textual barthesiana, o verdadeiro lugar da escrita é a leitura, o verdadeiro exercício está no leitor enquanto espaço onde todas as palavras do texto são inscritas.
Assim se revela o ser total da escrita: um texto é feito de escritas múltiplas, saídas de várias culturas e que entram umas com as outras em diálogo, em paródia, em contestação; mas há um lugar em que essa multiplicidade se reúne, e esse lugar não é o autor, como se tem dito até aqui, é o leitor: o leitor é o espaço exacto em que se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que uma escrita é feita; a unidade de um texto não está na sua origem, mas no seu destino, mas este destino já não pode ser pessoal: o leitor é um homem sem história, sem biografia, sem psicologia; é apenas esse alguém que tem reunidos num mesmo campo todos os traços que constituem o escrito.
Roland Barthes, A Morte do Autor
É incontornável. A questão da temporalidade da leitura de um texto obriga a atenção a dirigir-se para a distinção barthesiana entre textos de prazer e textos de gozo. Os textos de prazer, os clássicos, abrem-se ao entendimento do leitor sem sobressaltos; os textos de gozo, modernos, forçam a captação da sua inteligibilidade sob pena de fazer cair o leitor numa lentidão irreversível.
O que é que confere, então, rapidez à leitura? O que é que sistematiza a legibilidade? Roland Barthes diz que não há critérios objectivos para definir as práticas textuais, uma vez que só o próprio texto baliza o gozo do tempo de mergulho e a sua fenda. E depois, há sempre os livros que oferecem resistência.
Ser legível é um modelo clássico vindo da escola: ser legível é ser lido na escola.
- De modo que isto está cada vez pior.
- Medonho! É de um reles, postiço! Sobretudo postiço! Já não há nada genuíno neste miserável país, nem mesmo o pão que comemos!
Eça de Queiroz, Os Maias
Kant considera que o homem tem a oportunidade de ser feliz quando aproxima o seu querer do dever. Assim nasce, para o filósofo de Königsberg, o homem como criador, uma vez que no mundo da liberdade o homem é o criador das próprias leis. Enquanto releio Oscar Wilde, De Profundis, sinto que o arco do pensamento os une através desta passagem: ser inteiramente livre e ao mesmo tempo inteiramente dominado pela lei, é o eterno paradoxo da vida humana de que nos apercebemos a todo o momento.
A Montanha Mágica, obra publicada em 1924, é uma narrativa extensa atravessada pelo Tempo e sempre de olhos postos na cultura europeia. A partir das altas montanhas, o Tempo é a figura central desta obra envolvente sobre o ser-se homem na sua totalidade; e a morte como aprendizagem definitiva.
Diz Thomas Mann:
...para a vida há dois caminhos: um é o usual, directo e ajuizado. O outro é mau, ele passa pela morte e este é o caminho genial.
O poeta e romancista italiano Cesare Pavese (1908-1950) escreveu A Lua e as Fogueiras poucos meses antes de se suicidar, em Turim, num quarto de hotel.
A narrativa gira à volta de um homem sem rosto que regressa à terra onde nasceu, revivendo o passado no presente.
É um livro sobre as origens, sobre a busca de identidade. Simples e belo.
Tantas vezes me havia imaginado encostado ao parapeito da ponte, a interrogar-me como fora possível passar tantos anos naquele buraco, naqueles caminhos, pastoreando a cabra e procurando maçãs caídas no fundo da ribeira, convencido de que o mundo terminava na curva onde a estrada descia até ao Belbo. (...)
Deste modo, durante muito tempo julguei que esta terra onde nasci fosse tudo o que havia no mundo. Agora que vi realmente o mundo e sei que é formado por tantas pequenas aldeias, não sei se em rapaz me enganava muito.
Cesare Pavese, A Lua e as Fogueiras, Colecção Mil Folhas, pp 7-8
Abençoado seja o que inventou o sono, a manta que cobre todos os pensamentos humanos (...).
M. Cervantes
O Sono, Salvador Dali
Eu choro para dentro como as grutas
António Lobo Antunes ( 19-10-2011)
Uma ocorrência feliz na sala de aula levou-me o pensamento para o livro, Como um Romance, do professor e escritor Daniel Pennac.
Que espantosos pedagogos nós éramos, quando não nos preocupávamos com a pedagogia.
sophia de mello breyner andresen