Terça-feira, 12.08.14

 

 Gerês, 12 de Agosto

 

Aniversário

 

Mãe:

Que visita tão pura que me fizeste

Neste dia!

Era a tua memória que sorria

Sobre o meu berço.

Nu e pequeno como me deixaste,

Ia chorar de medo e de abandono.

Então vieste, e outra vez cantaste,

Até que veio o sono.

 

Miguel Torga, Diário IV, Coimbra (1973), pág 111.

 

 



publicado por omeuinstante às 12:12 | link do post

Segunda-feira, 03.03.14

 

Somos nós
As humanas cigarras!
Nós,
Desde os tempos de Esopo conhecidos.
Nós,
Preguiçosos insectos perseguidos.
Somos nós os ridículos comparsas
Da fábula burguesa da formiga.
Nós, a tribo faminta de ciganos
Que se abriga
Ao luar.
Nós, que nunca passamos
A passar!...

Somos nós, e só nós podemos ter
Asas sonoras,
Asas que em certas horas
Palpitam,
Asas que morrem, mas que ressuscitam
Da sepultura!
E que da planura
Da seara
Erguem a um campo de maior altura
A mão que só altura semeara.

Por isso a vós, Poetas, eu levanto
A taça fraternal deste meu canto,
E bebo em vossa honra o doce vinho
Da amizade e da paz!
Vinho que não é meu,
mas sim do mosto que a beleza traz!

E vos digo e conjuro que canteis!
Que sejais menestreis
De uma gesta de amor universal!
Duma epopeia que não tenha reis,
Mas homens de tamanho natural!
Homens de toda a terra sem fronteiras!
De todos os feitios e maneiras,
Da cor que o sol lhes deu à flor da pele!
Crias de Adão e Eva verdadeiras!
Homens da torre de Babel!

Homens do dia a dia
Que levantem paredes de ilusão!
Homens de pés no chão,
Que se calcem de sonho e de poesia
Pela graça infantil da vossa mão!

Miguel Torga



publicado por omeuinstante às 22:03 | link do post

Quarta-feira, 07.11.12

Nas horas baças que pedem um novo renascer, volto-me na direcção do "sítio geográfico vital gravado nos cromossomas". Gesto que me faz sentir, repito-o, que as fragas são firmes, as árvores nascem, a lua é bela, os homens são promessas. "E sinto Paz".


Não sei se vês, como eu vejo.

Pacificado,

Cair a tarde

Serena

Sobre o vale,

Sobre o rio,

Sobre os montes

E sobre a quietação

Espraiada da cidade.

Nos teus olhos não há serenidade

Que o deixe entender.

Vibram na lassidão da claridade.

E o lírico poema que me acontecer

Virá toldado de melancolia,

Porque daqui a pouco toda a poesia

Vai anoitecer.

 

Miguel Torga

Chaves, 6 de Setembro de 1986



publicado por omeuinstante às 15:41 | link do post

Segunda-feira, 05.11.12
Canta, poeta, canta! 
Violenta o silêncio conformado. 
Cega com outra luz a luz do dia. 
Desassossega o mundo sossegado. 
Ensina a cada alma a sua rebeldia.

Miguel Torga 


publicado por omeuinstante às 22:02 | link do post

Segunda-feira, 01.10.12

Tempo — definição da angústia. 

Pudesse ao menos eu agrilhoar-te 
Ao coração pulsátil dum poema! 
Era o devir eterno em harmonia. 
Mas foges das vogais, como a frescura 
Da tinta com que escrevo. 
Fica apenas a tua negra sombra: 
— O passado, 
Amargura maior, fotografada. 

Tempo... 
E não haver nada, 
Ninguém, 
Uma alma penada 
Que estrangule a ampulheta duma vez! 

Que realize o crime e a perfeição 
De cortar aquele fio movediço 
De areia 
Que nenhum tecelão 
É capaz de tecer na sua teia! 

Miguel Torga, Cântico do Homem



publicado por omeuinstante às 10:11 | link do post

Quarta-feira, 20.06.12

Na frente ocidental nada de novo.

O povo

Continua a resistir.

Sem ninguém que lhe valha,

Geme e trabalha

Até cair.

 

Miguel Torga

 


 Eduardo Gageiro, fotógrafo português


publicado por omeuinstante às 23:20 | link do post

Sexta-feira, 25.05.12

Miguel Torga, pseudónimo do médico Adolfo Correia Rocha, não escolhe por acaso o seu pseudónimo literário. Torga é uma planta transmontana, urze das serranias, com raízes fortes que a fixam às fragas e penedos áridos das montanhas.
A poesia de Torga retrata uma ligação profundamente solitária do Homem à Terra. 

Ler Torga é respirar a memória da terra-berço, e qualquer coisa dentro de mim se acalma...

Poesia-chão, sentida na caligrafia da solidão... 

 

Serra!

e qualquer coisa dentro de mim se acalma...
Qualquer coisa profunda e dolorida,
Traída,
Feita de terra
e alma.

Uma paz de falcão na sua altura
A medir as fronteiras:
Sob a garra dos pés a fraga dura,
E o bicho a picar estrelas verdadeiras...

Miguel Torga, Diário II



publicado por omeuinstante às 21:03 | link do post

Quarta-feira, 18.01.12

Deixem passar...


Havia sentinelas a guardar
A fronteira do sonho proibido.
Mas ergui, atrevido,
A voz de sonhador,
E passei
Como um rei,
Sem dar mostras do íntimo terror.

E cá vou a passar,
aterrado e sozinho,
A lembrar
O santo-e-senha com que abri caminho...

Miguel Torga, 1973



publicado por omeuinstante às 10:07 | link do post

Domingo, 15.01.12

Ninguém ouve a canção, mas o ribeiro canta!
Canta, porque um alegre deus o acompanha!
Quantos mais tombos, mais a voz levanta!
Canta, porque vem limpo da montanha!

Espelho do céu, é quanto mais partido
Que mais imagens tem da grande altura.
E quebra-se a cantar, enternecido
De regar a paisagem de frescura.

Água impoluta da nascente,
És a pura poesia
Que se dá de presente
Às arestas da humana penedia..."

Miguel Torga, Odes.



publicado por omeuinstante às 10:04 | link do post

Terça-feira, 27.12.11

O mar, em Torga. No Diário IV.


...um verso azul feito de espuma,
E de fúria e de bruma,... 



publicado por omeuinstante às 10:00 | link do post

Sexta-feira, 23.12.11

 

Era uma vez, lá na Judeia, um rei.
Feio bicho, de resto:
Uma cara de burro sem cabresto
E duas grandes tranças.
A gente olhava, reparava e via
Que naquela figura não havia
Olhos de quem gosta de crianças.

E, na verdade, assim acontecia.
Porque um dia,
O malvado,
Só por ter o poder de quem é rei
Por não ter coração,
Sem mais nem menos,
Mandou matar quantos eram pequenos
Nas cidades e aldeias da nação.

Mas, por acaso ou milagre, aconteceu
Que, num burrinho pela areia fora,
Fugiu
Daquelas mãos de sangue um pequenito
Que o vivo sol da vida acarinhou;
E bastou
Esse palmo de sonho
Para encher este mundo de alegria;
Para crescer, ser Deus;
E meter no inferno o tal das tranças,
Só porque ele não gostava de crianças.

Miguel Torga 

 



publicado por omeuinstante às 23:57 | link do post

Sábado, 10.12.11

Não tenhas medo, ouve:

É um poema
Um misto de oração e de feitiço...
Sem qualquer compromisso,
Ouve-o atentamente,
De coração lavado.
Poderás decorá-lo
E rezá-lo
Ao deitar
Ao levantar,
Ou nas restantes horas de tristeza.
Na segura certeza
De que mal não te faz.
E pode acontecer que te dê paz...                                                                                                                                                                                              

Miguel Torga, Diário XIII                                                               



publicado por omeuinstante às 17:00 | link do post

Terça-feira, 01.11.11

Chove uma grossa chuva inesperada,
Que a tarde não pediu mas agradece.
Chove na rua, já de si molhada
Duma vida que é chuva e não parece.

Chove, grossa e constante,
Uma paz que há-de ser
Uma gota invisível e distante
Na janela, a escorrer...

Miguel Torga, Diário II, 1943



publicado por omeuinstante às 10:00 | link do post

Domingo, 18.09.11

Apetece cantar, mas ninguém canta.
Apetece chorar, mas ninguém chora.
Um fantasma levanta
A mão do medo sobre a nossa hora.

Apetece gritar, mas ninguém grita.
Apetece fugir, mas ninguém foge.
Um fantasma limita
Todo o futuro a este dia de hoje.

Apetece morrer, mas ninguém morre.
Apetece matar, mas ninguém mata.
Um fantasma percorre
Os motins onde a alma se arrebata.

Oh! Maldição do tempo em que vivemos,
Sepultura de grades cinzeladas,
Que deixam ver a vida que não temos
E as angústias paradas! 

Miguel Torga, Cântico do Homem
 

Dies Irae -  Dias da Ira, título de um hino do século XIII escrito por Tomás de Celano.


 



publicado por omeuinstante às 12:30 | link do post

Sábado, 30.07.11

Falta a luz dos teus olhos na paisagem:
O oiro dos restolhos não fulgura.
Os caminhos tropeçam, à procura
Da recta claridade dos teus passos.
Os horizontes, baços,
Muram a tua ausência.
Sem transparência,
O mesmo rio que te reflectiu
Afoga, agora, o teu perfil perdido.
Por te não ver, a vida anoiteceu

À hora em que teria amanhecido.

 

Miguel Torga, Diário IX



publicado por omeuinstante às 00:17 | link do post

Segunda-feira, 04.07.11

Retrato

Tens nos olhos a luz que me faltava.
Agora posso ver o que não via:
O rosto da alegria

No teu rosto.

vinho ainda a sonhar
Na fervura do mosto,
Não sabes duvidar
Das ilusões.

És a vida que esperas...
Em ti, as estações
São todas primaveras.

 


Miguel Torga, Diário x, Coimbra, p.83
 



publicado por omeuinstante às 11:38 | link do post

Segunda-feira, 27.06.11

Viajar, num sentido profundo, é morrer. É deixar de ser manjerico à janela do seu quarto e desfazer-se em espanto, em desilusão, em saudade, em cansaço, em movimento, pelo mundo além.

Miguel Torga, Diário (1937)



publicado por omeuinstante às 20:59 | link do post

Segunda-feira, 06.06.11

Em Portugal, as pessoas são imbecis ou por vocação, ou por coacção, ou por devoção.

 

Miguel Torga



publicado por omeuinstante às 16:15 | link do post

Segunda-feira, 09.05.11
 É um fenómeno curioso: o país ergue-se indignado, moureja o dia inteiro indignado, come, bebe e diverte-se indignado, mas não passa disto. Falta-lhe o romantismo cívico da agressão.

Somos, socialmente, uma colectividade pacífica de revoltados.

 

 

Miguel Torga, Diário IX, ( Chaves,17 de Setembro 1961)



publicado por omeuinstante às 18:20 | link do post

Segunda-feira, 02.05.11




O meu perfil é duro como o perfil do mundo.
Quem adivinha nele a graça da poesia?
Pedra talhada a pico e sofrimento,
É um muro hostil à volta do pomar.
Lá dentro há frutos, há frescura, há quanto
Faz um poema doce e desejado:
Mas quem passa na rua
Nem sequer sonha que do outro lado
A paisagem da vida continua.

Miguel Torga


publicado por omeuinstante às 11:08 | link do post

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Sem a música, a vida seria um erro. Nietzsche
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