Uma circunstância banal e espontânea trouxe à memória Vicente. É um conto de Miguel Torga, onde se mistura a fábula com a narrativa bíblica.
Na história, Vicente, o corvo, vê a possibilidade de enfrentar o dilúvio, em vez de se sujeitar à opressão da arca; abre as asas negras e parte, não se intimidando com o aspecto sinistro que o céu apresentava.
É uma narrativa directa e concisa, despertando a curiosidade do leitor.
Não é fácil resistir a Vicente e ao que ele representa, símbolo universal da liberdade.
Naquela tarde, à hora em que o céu se mostrava mais duro e mais sinistro, Vicente abriu as asas negras e partiu. Quarenta dias eram já decorridos desde que, integrado na leva dos escolhidos, dera entrada na Arca. Mas desde o primeiro instante que todos viram que no seu espírito não havia paz. Calado e carrancudo, andava de cá para lá numa agitação contínua, como se aquele grande navio onde o Senhor guardara a vida fosse um ultraje à criação. Em semelhante balbúrdia - lobos e cordeiros irmanados no mesmo destino -, apenas a sua figura negra e seca se mantinha inconformada com o procedimento de Deus. Numa indignação silenciosa, perguntava:- a que propósito estavam os animais metidos na confusa questão da torre de Babel? Que tinham que ver os bichos com as fornicações dos homens, que o Criador queria punir? Justos ou injustos, os altos desígnios que determinavam aquele dilúvio batiam de encontro a um sentimento fundo, de irreprimível repulsa. E, quanto mais inexorável se mostrava a prepotência, mais crescia a revolta de Vicente.
Miguel Torga, Os Bichos, Coimbra, p 127
sophia de mello breyner andresen