E assim começa o belo livro do pintor Nadir Afonso:
Sob as mais variadas formas, esta minha tendência para a lucubração é de família.
Meu pai padecia de doença nervosa e uma simples falta de lembrança perturbava-lhe o sono. Não raras vezes me interpelava na noite com perguntas destas " Como se chamava a tia de Montalegre?" E eu respondia: " Ricardina". Isto poderá parecer absurdo e fútil a quem está de fora; no entanto, só após o esclarecimento, o desassossego do meu pai cessava.
Quem sai aos seus não degenera: recebi por sucessão algumas preocupações e crises congéneres.
- Mas o que tem a tia de Montalegre a ver com o Universo?
Tem muito que ver; as mesmas inquietações nos levam a procurar respostas. Meu pai lia Flammarion. As mais avançadas teorias sobre o cosmos não tinham chegado à nossa terra natal, e, segundo aquele astrónomo, a trajectória rectilínea dum projéctil lançado no espaço seria eterna e infinita. Esta concepção dos céus criava em mim fortes perturbações-
- Só se incomoda com estas coisas quem quer.
Certo, mas melhor seria dizer que só não se incomoda com estas coisas quem pode.
Não temos necessidade de conhecer a Geometria do Universo nem o nome da tia de Montalegre, mas temos necessidade de dormir. Não me meto no trabalho dos grandes da ciência; não sou versado em filosofia, nem uma só preocupação que a outros importe me identifica como escritor: o Universo é que se mete comigo, e se me interrogo sobre ele, é para tranquilizar em mim uma opressiva carência de compreensão.
(...)
Nadir Afonso (2010), Universo e Pensamento, Afrontamento, p.5
sophia de mello breyner andresen