Uma vez no Havai fui levado a ver um templo budista. Dentro do templo um homem disse-me: "Vou dizer-lhe uma coisa que nunca esquecerá: a cada homem são distribuídas as chaves dos portões do céu. Mas essas chaves abrem também os portões do inferno."
Richard P. Feynman (2005), O Significado de Tudo, Gradiva, pág 17.
Parece-me correcta esta unidade primordial. As chaves são o código de acesso ao bem e ao mal, aos valores.
A escolha está em nós; representa o desvio necessário para que cada ser se transforme em pessoa, em instante de liberdade.
Resta-nos agir, para não nos queimarmos nos nossos próprios medos; e não morrermos em vida.
Tendo como pretexto A História de Khosrow e Shirin, poema clássico da literatura persa do século XII, o realizador iraniano Abbas Kiarostami envolve-nos nos amores de uma princesa arménia pelo rei da Pérsia e no triângulo amoroso que resulta da paixão de Shirin por Farhad.
A construção hermenêutica da narrativa passa pelo olhar de 114 mulheres de várias gerações, e através duma banda sonora que partilha dos sentidos do discurso.
Uma vez que tudo está velado ao espectador, é pelas emoções que passam no rosto destas mulheres - choro, riso, contentamento, cumplicidades, prazer, sofrimento - que se dá o acesso ao entendimento. Em Shirin, o rosto é a porta das percepções.
Neste filme metafísico - o corpo é apenas som - nós somos observadores e observados, como se de um jogo de espelhos se tratasse.
É um filme onde se percebe que a chave da sabedoria anda perdida nos caminhos do Amor. Amor? "lágrimas de sete cores", ensina o poema.
Neste invisível presente, Shirin é cada um de nós.
Belíssimo. A não perder.
Vita Nuova é considerada uma "obra menor". Menos extensa ou menos relevante? Sabemos que ao longo século XIII só o Amor divino podia ser verbalizado, mas em Vita Nuova há uma porta aberta para o dizer do Amor humano e profundamente terreno. Um texto inovador, portanto.
Amor e coração são uma cousa,
ditar do sábio posto na canção,
nem ser assim um sem o outro ousa,
como alma racional sem a razão.
Fá-los natura em tempo de amorosa,
o Amor dono, e a casa o coração,
dentro da qual dormindo se repousa
às vezes curta ou longa a estação.
Em sábia dama surge a formusura
e tanto praz aos olhos que vem pôr
no coração desejo do que apraz;
e esse desejo nele tanto dura
que desperta o espírito do Amor.
E assim nobre varão em dama faz.
Vasco Graça Moura, A Vita Nuova de Dante Alighieri, Bertrand, pág 73.
Porque hoje é verão.
A linguagem não exprime tudo. Tem limites como o entendimento humano.
Acerca daquilo de que se não pode falar, tem que se ficar em silêncio.
Wittgenstein, Ludwig. Tratado lógico - Filosófico / Investigações Filosóficas, Fundação Calouste Gulbenkian, Tradução e Prefácio de M.S. Lourenço, 2ª edição revista, 1995, pág 142.
Como nos ensina Platão, a amizade é o cultivo do belo, da sabedoria e até do divino. É um dinamismo que nos aproxima e fixa em algumas pessoas. Em outras não. É um itinerário iniciático e dialéctico, conduzido pela mão de Diotima.
Os encontros com a minha amiga Olga Rocha desafiam-me e inquietam-me, mesmo que tenham a duração de um instante.
Esse lado breve mas imutável das relações representa, para mim, um tempo certo e uma escala de valoração, provando que nem tudo se dissolve no ar.
Foi então que apareceu a raposa.
- Olá, bom dia! - disse a raposa
- Olá bom dia! - respondeu delicadamente o principezinho que se voltou mas não viu ninguém.
- Estou aqui - disse a voz - debaixo da macieira.
- Quem és tu? - perguntou o principezinho. - És bem bonita...
- Sou uma raposa - disse a raposa.
- Anda brincar comigo - pediu - lhe o principezinho. - Estou tão triste...
- Não posso ir brincar contigo - disse a raposa. - Não estou presa...
- Ah! Então desculpa! - Disse o principezinho.
Mas pôs-se a pensar, a pensar, e acabou por perguntar:
- O que é que "estar preso" quer dizer?
- Vê-se logo que não és de cá - disse a raposa. - De que é que tu andas à procura?
- Ando à procura dos homens - disse o principezinho. - O que é que "estar preso" quer dizer?
- Os homens têm espingardas e passam o tempo a caçar - disse a raposa. - É uma grande maçada! E também fazem criação de galinhas! Aliás, na minha opinião, é a única coisa interessante que eles têm. Andas à procura de galinhas?
- Não - disse o principezinho. - Ando à procura de amigos. O que é que "estar preso" quer dizer?
- É uma coisa que toda a gente se esqueceu - disse a raposa. - Quer dizer que se está ligado a alguém, que se criaram laços com alguém.
- Laços?
- Sim, laços - disse a raposa. - Ora vê: por enquanto, para mim, tu não és senão um rapazinho perfeitamente igual a outros cem mil rapazinhos. E eu não preciso de ti. E tu também não precisas de mim. Por enquanto, para ti, eu não sou senão uma raposa igual a outras cem mil raposas. Mas, se tu me prenderes a ti, passamos a precisar um do outro. Passas a ser único no mundo para mim. E, para ti, também passo a ser única no mundo...
- Parece que estou a começar a perceber - disse o principezinho. - Sabes, há uma certa flor...tenho impressão que estou preso a ela...
(...).
Antoine de Saint - Exupéry, O Principezinho
Há laços que perduram.
Assisti, entre as 18h.00 e as 19h.00, a um grande concerto no CCC. O jovem pianista João Ferreira apresentou um programa com temas desde o clássico, passando pelo romântico, até ao início do séc. XX.
João Ferreira, que actualmente estuda na École Normale de Musique de Paris Alfred Cortot, na classe de piano do professor Marian Rybicki, apresentou na 1ª parte Quadros de uma Exposição - 30´ de Modest Mussorgsky. Foi perfeito.
A 2ª parte passou por Sarcasmos op. 17 - 12´ de Sergei Prokofieff e ainda Sonata Nº 1 Op. -15´de Alberto Ginastera. Devido à persistência do escasso público, fomos presenteados com um Nocturno de António Fragoso, compositor português do princípio do séc. XX.
Puro instante. Nietzsche tem razão.
Ontem, por volta das 23 horas, lembrei-me de Saramago.
As palavras são boas. As palavras são más. As palavras ofendem. As palavras pedem desculpas. As palavras queimam. As palavras acariciam. As palavras são dadas, trocadas, oferecidas, vendidas e inventadas. As palavras estão ausentes. (...) As palavras aconselham, sugerem, insinuam, ordenam, impõem, segregam, eliminam. São melífluas ou azedas. (...) Há muitas palavras.(...)
A morte faz-me sempre recuar no tempo. E lembrei-me de outro prémio Nobel da Literatura, Ernest Hemingway. Peguei na velha edição "livros do Brasil". Numa espécie de introdução à obra pode ler-se:
(...) A morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do género humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.
Hoje é por ti, José Saramago.
A obra de Saramago contribui para o combate da "cegueira" que atravessa a sociedade portuguesa.
Acho que na sociedade actual nos falta filosofia. Filosofia como espaço, lugar, método de refexão, que pode não ter um objectivo determinado, como a ciência, que avança para satisfazer objectivos.
Falta-nos reflexão, pensar, precisamos do trabalho de pensar, e parece-me que, sem ideias, não vamos a parte nenhuma.
O desenvolvimento científico e tecnológico imprime um ritmo de mudança tão acelerado que nos desgasta e precipita no nada. Na era da hiperinformação tudo está coisificado e permanentemente desactualizado. Resta o Homem.
Dantes as horas eram lentas. Um encarcerado, ao cabo de trinta ou quarenta anos de cadeia, regressava actual à luz da liberdade.
Agora não. Agora, no prazo de uma semana, a história muda a face do mundo. E quem regressa das masmorras regressa desactualizado na técnica, na história, na moral, na humanidade. Regressa um homem das cavernas.
Miguel Torga, Diário VI, 70-71
Andar pelo bosque é como andar à procura da verdade. Perdemo-nos sempre.
Há duas maneiras de passear num bosque. Uma é experimentar um ou vários caminhos (...); a segunda é caminhar de modo a descobrir como o bosque é e por que são acessíveis certas veredas, e outras não.
Eco, Umberto, Seis Passeios nos Bosques da Ficção, Difel, p. 33.
Há considerações que não podemos deixar de corroborar. Hoje persisti em agir de acordo com uma delas. Refiro-me à leveza, que lucidamente Italo Calvino nos dá em Seis propostas para o próximo milénio.
Na edição da Teorema e com tradução de José Colaço Barreiros (grande prémio de tradução 1993), o autor diz:
Existe uma leveza do pensamento, tal como todos sabemos que existe uma leveza da frivolidade; aliás, a leveza do pensamento pode fazer a frivolidade parecer pesada e opaca.
Reconheço a dificuldade em transformar esta consideração em hábito.
"O segredo está no livro, no livro está o segredo."
Hannele Huovi (escritora finlandesa)
Sobre os diferentes métodos de começar nem ouso falar. Quero apenas o instante. Ao minuto e ao segundo. Quero horas de uma perfeição vazia. E já passou. Oculto-me no Instante.
Passou.
E risco um perfil na consciência.
São lentas as horas do silêncio,
Aborreço-me.
Apetece-me a infância,
Chove?
Hoje.
sophia de mello breyner andresen