O amor do enamoramento – que é, na minha opinião, o protótipo e expoente
máximo de todos os erotismos – caracteriza-se por conter, ao mesmo tempo, estes
dois ingredientes: o sentimento de «encanto» por outro ser que provoca em nós
uma «ilusão» completa e o sentimento de se estar absorvido por ele até à raiz da
nossa pessoa, como se nos houvesse arrancado do nosso próprio fundo vital e
tivéssemos transplantado nele as nossas raízes vitais. (...) a entrega fundamental
não se efectua ao nível da vontade mas a um nível muito mais profundo e radical.
Não é um querer entregar-se: é um entregar-se sem querer.
Ortega y Gasset, Estudos sobre o Amor,Relógio D´Água, 2002
Agamben é um pensador instigante.
Obriga o pensamento a curvar-se até às raízes para encontrar os sentidos da palavra guardados em segredo.
Estica as palavras, por inclusão ou exclusão, mas sempre por excesso.
Nudez é um conjunto de ensaios sobre a contemporaneidade - nua - onde os conceitos de belo, festa, ócio, lúdico, vão sendo cerzidos por uma escrita que viaja entre a metafísica (pós-metafísica) e os costumes.
Aqui o homem é reduzido à sua autenticidade, à sua vida nua; e o instante é soberano.
Por detrás da veste de graça pressuposta, nada há e a nudez é precisamente este nada ter por detrás de si, este ser pura visibilidade e presença.
Giorgio Agamben, Nudez, Relógio D´Água
Fala baixo. Não te estafes a falar alto.
Deixa que os outros se esfalfem até ficarem calados. Falar alto é compensar o que em ideias é baixo.
E essa é a compensação dos que escutam.
Não te esforces a falar alto. Serás ouvido quando os outros se esfalfarem e já não tiverem voz.
Como o que se ouve num recinto depois que o comício acabou.
Vergílio Ferreira, Pensar, Bertrand Editora, 1992, pp247
Em toda a lamentação, o que se lamenta é a linguagem, assim como todo o louvor é, antes de mais, louvor do nome. Estes são os extremos que definem o âmbito e a vigência da língua humana, e o seu modo de se referir às coisas. Aí, onde a natureza se sente atraiçoada pela significação, começa a lamentação; onde o nome diz perfeitamente a coisa, a linguagem culmina no canto de louvor, na santificação do nome.
Giorgio Agamben, A Comunidade que Vem, Presença, 1993, tradução de António Guerreiro, pp 48.
Agamben convida-nos a fazer parte de uma comunidade sem pressupostos, sem reivindicações identitárias e formada por singularidades - um ser qualquer - onde se escape à alienação da linguagem.
Aqui, as palavras não são levadas a um estado de esgotamento através da sua "declinação"; não morrem de fadiga.
Na comunidade que vem, resiste-se ao fascínio de proferir o que quer que seja de maneira absoluta; o ser é o ser-assim; perfeitamente comum.
Os deuses haviam condenado Sisifo a rodar uma rocha até ao cimo de uma montanha, e uma vez atingido o cimo a rocha regressava pelo seu próprio peso ao sopé da montanha, obrigando Sisifo a recomeçar o seu trabalho, sem cessar. Haviam pensado (os deuses), com algum fundamento, que não há castigo mais terrível que o trabalho inútil e sem esperança. (...)
Se o mito é trágico é porque o homem, seu protagonista, tem consciência que a esperança de atingir o propósito do seu trabalho é frustada.
Muitos trabalhadores do nosso tempo trabalham nas mesmas condições e o seu destino não é menos absurdo.
Mas esta situação só é trágica nos momentos em que se tem consciência dela.
( texto adaptado)
Albert Camus, El mito de Sisifo, Losada, 1970, pp.93-95
O que é um Clássico? Isto no que diz respeito aos clássicos antigos tanto quanto aos clássicos modernos.
Haverá distinção entre ler e reler uma obra?
Não, não há. Nem tem muita importância.
Só os episódios de cada vida - no espaço e no tempo - pormenorizam a distinção.
Rerrelamos.
1. Os clássicos são os livros de que se costuma ouvir dizer: " Estou a reler..." e nunca " Estou a ler ".
4. De um clássico toda a releitura é uma leitura de descoberta igual à primeira.
5. De um clássico toda a primeira leitura é na realidade uma releitura.
6. Um clássico é um livro que nunca acabou de dizer o que tem a dizer.
14. É um clássico o que persiste como ruído de fundo mesmo onde dominar a actualidade mais incompatível.
Italo Calvino, Porquê Ler os Clássicos?, Teorema (1994, pág 7, 9, 12), Tradução de José Colaço Barreiros
A única asserção verdadeira consiste em afirmar que ler os clássicos é melhor do que não ler os clássicos.
Se não se pode rir no céu, não quero ir para lá.
Martin Lutero
(Público, P2)
Se julgais que vou fazer a defesa do que para mim é a realidade, muito vos enganais. Sou um actor sem teatro, um fantoche sem cordelinhos, um poeta sem poemas, um amante sem amor. Os próprios piolhos de mim nada pretendem. Pois bem, senhor, eu lanço por terra a minha espada de madeira. Não tenciono defender-me.
Bergman, O Retábulo da Peste in Três Peças em um Acto ( pág 56), Paisagem
Há sempre peças várias em um só acto; com cenário único, facilitando a montagem.
A encenação tem dificuldades menores e subordina-se a um tema circular: a realidade, a própria vida.
Nota finalizante: assistamos, no zimbório, com um ar de circunstância, como convém.
Apenas um rumor
E no teu rosto aberto sobre o mar
cada palavra era apenas o rumor
de um bando de gaivotas a passar.
Eugénio de Andrade, Os Amantes Sem Dinheiro ( pág 95), Limiar
A presença do ar e da água emoldurando a euforia das vivências.
Palavras aladas que transportam a génese de quase nada.
O que é que legitimamente se deve fazer, em democracia, quando um qualquer governo não quer governar?
A ciência é, de algum modo, como a democracia. Não há nada de transcendental que assegure a sua existência: esta tem de ser mantida todos os dias pelos que participam nela.
Jorge Dias de Deus, Da Crítica da Ciência à Negação da Ciência, Gradiva, 2003, pág 12
Apliquemos, mesmo sendo por imitação, esta teimosia à contingência dos nossos lugares.
Simples. Sem crítica.
A felicidade é uma obra-prima: o menor erro falseia-a, a menor hesitação altera-a, a menor falta de delicadeza desfeia-a.
Marguerite Yourcenar (1903-1987)
Escrito na pedra 20-07-10 (P2)
Há dias felizes.
(roubado casa das artes)
Sapateiro em Cabul, Afeganistão, espera: ler é ir ao encontro de si e do outro.
Experiência universalizável; desperta a necessidade de construção de um poema narrativo sem encenações dramáticas.
Ler; sem tempo, sem espaço. Ler.
Mesmo que seja um livro do deve-haver.
Fulguração do instante.
sophia de mello breyner andresen