Um dia, quando começa, parece igual aos outros.
A mesma luz que entra pela janela,
ruídos de obras e automóveis, vozes...
Mas o que nesse dia me falta é outra coisa:
a tua voz, a surpresa de cada instante que me dás,
uma luz diferente que não vem de fora,
da mesma rua e do mesmo céu, mas de dentro de ti.
Assim, o que faz a mudança do mundo e das coisas
não é o mundo nem as coisas:
somos nós, e a relação que nos prende um ao outro
- isso que, não sendo nada para fora de nós,
é tudo o que temos nesta vida.
Nuno Júdice
Eu era um poeta impulsionado pela filosofia, não um filósofo dotado de faculdades poéticas.
Fernando Pessoa
Devias estar aqui rente aos meus lábios
para dividir contigo esta amargura
dos meus dias partidos um a um
- Eu vi a terra limpa no teu rosto,
Só no teu rosto e nunca em mais nenhum.
Eugénio de Andrade
Se as coisas são inatingíveis... ora!
não é motivo para não querê-las.
Que tristes os caminhos, se não fora
a mágica presença das estrelas!
Mário Quintana
O poder trava o poder.
Montesquie
A liberdade, sim, a liberdade!
A verdadeira liberdade!
Pensar sem desejos nem convicções.
Ser dono de si mesmo sem influência de romances!
Existir sem Freud nem aeroplanos,
Sem cabarets, nem na alma, sem velocidades, nem no cansaço!
A liberdade do vagar, do pensamento são, do amor às coisas naturais
A liberdade de amar a moral que é preciso dar à vida!
Como o luar quando as nuvens abrem
A grande liberdade cristã da minha infância que rezava
Estende de repente sobre a terra inteira o seu manto de prata para mim...
A liberdade, a lucidez, o raciocínio coerente,
A noção jurídica da alma dos outros como humana,
A alegria de ter estas coisas, e poder outra vez
Gozar os campos sem referência a coisa nenhuma
E beber água como se fosse todos os vinhos do mundo!
Passos todos passinhos de criança...
Sorriso da velha bondosa...
Apertar da mão do amigo...
Que vida que tem sido a minha!
Quanto tempo de espera no apeadeiro!
Quanto viver pintado em impresso da vida!
Ah, tenho uma sede sã. Dêem-me a liberdade,
Dêem-ma no púcaro velho de ao pé do pote
Da casa do campo da minha velha infância...
Eu bebia e ele chiava,
Eu era fresco e ele era fresco,
E como eu não tinha nada que me ralasse, era livre.
Que é do púcaro e da inocência?
Que é de quem eu deveria ter sido?
E salvo este desejo de liberdade e de bem e de ar, que é de mim?
Álvaro de Campos
Na Cidade Distante
Novamente a memória a insinuar-se sobre o corpo
A alisar o musgo húmido da boca entreaberta
O cuspo dos dias misturado com a substância da terra
A servir de bálsamo para a longa viagem do tempo
Quando o cansaço me habita como uma névoa dourada
Preciso desses candeeiros das ruas por onde passávamos
Dos silêncios evocativos, desertos do possível
As mãos como estrelas cadentes no flanco da cidade
Repetida e reinventada e acariciada nos espelhos
E sintagmas luminosos e coloridos no espaço nocturno
Éramos a esquina revelada, o trânsito sanguíneo
Dos impulsos crescentes e das luas ainda por cumprir
O teu riso branco era o sol da noite rendida e obscura
Espanto súbito de aconchego nocturno que destruía
A solidão que não queríamos carregar nos ombros
As estrelas eram uma oração que não entendíamos
Colar de pérolas de dor e o seio da virgem na igreja
Inventavas gestos de salvação na volta da cintura
E eu perdia-me no discurso sedutor dos teus membros
Gerúndios de prazer que o próprio prazer antecipava
Passos lentos na direcção dos recantos mais íntimos
Pois ali éramos novamente crianças, uma vez mais
A acreditar no suave rio dos olhos e no perdão
Sem fingir ser ou ter, repousávamos nos jardins
Com o riso despreocupado de símios adormecidos
Um homem e uma mulher na cidade distante
Amando-se, ignorando o riso profano dos deuses
As doutrinas dos templos e a tormenta dos dias
Pois um só beijo seria o começo de um novo mundo
E uma brisa quente o princípio de todas as coisas
José Ferreira
Apreender
I
Passo a minha mão pela tua cabeça,
recurvamente, atentamente, e só com dedos brandos,
olhando-a como passa e vendo onde passou.
Quero tanto saber o que tu pensas.
IV
Porque esperaste, ciente, a pele da minha mão?
Jorge de Sena, Antologia Poética, Guimarães, pp. 96,97
Nenhuma beleza de primavera ou Verão tem tal graça
Como a que descobri numa face Outonal.
As jovens Belezas forçam-nos ao amor: isso é violação;
Esta apenas aconselha, e não lhe podemos escapar.
Se fosse vergonha amar, não seria vergonha aqui
Onde a Afeição toma o nome de Reverência.
Foram-lhe os primeiros anos a Idade de Ouro? É verdade,
Mas ela agora é ouro bem martelado e sempre novo.
John Donne, Elegias Amorosas, Assírio & Alvim, p. 49
A vida afectiva é a única que vale a pena. A outra apenas serve para organizar na consciência o processo da inutilidade de tudo.
Miguel Torga
Passa uma Borboleta
Passa uma borboleta por diante de mim
E pela primeira vez no Universo eu reparo
Que as borboletas não têm cor nem movimento,
Assim como as flores não têm perfume nem cor.
A cor é que tem cor nas asas da borboleta,
No movimento da borboleta o movimento é que se move,
O perfume é que tem perfume no perfume da flor.
A borboleta é apenas borboleta
E a flor é apenas flor.
Alberto Caeiro, Guardador de Rebanhos
Segundo o modelo, todo o professor excelente deveria ser um rigoroso planificador. Um rigoroso planificador das actividades que pretende desenvolver, dos meios e recursos que pretende utilizar e dos tipos de avaliação que pretende realizar. A ênfase que é atribuída, no modelo revogado, ao rigor «planificador» do docente, quase faz supor que é mais importante a planificação do que o próprio acto de ensinar e do que o próprio processo de ensino-aprendizagem. Ora, uma coisa é um plano de aula em que o professor tem de saber o que vai fazer (ou o que pretende que se faça) e como vai fazer (ou como pretende que se faça), outra coisa é pretender-se transformar esse plano de aula numa detalhada planificação que condiciona o acto de ensinar e o acto de aprender a uma sucessão de comportamentos previamente delineados.
O acto de ensinar deve ser planeado, mas não deve ser burocratizado. E deve ser planeado segundo o modo que a experiência do professor o ditar e segundo o modo que a necessidade da turma o aconselhar.
Publicado por Mário Carneiro
Mar sonoro
Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim.
A tua beleza aumenta quando estamos sós
E tão fundo intimamente a tua voz
Segue o mais secreto bailar do meu sonho.
Que momentos há em que eu suponho
Seres um milagre criado só para mim.
Sophia de Mello Breyner
No livro Elogio da Filosofia, Merleau-Ponty diz que filosofar é procurar, é, implicar que há coisas para se ver e dizer, isto é, reaprender a ver o mundo.
(...)
Porém eu procuro-te.
Antes que a morte se aproxime, procuro-te.
Nas ruas, nos barcos, na cama,
com amor, com ódio, ao sol, à chuva,
de noite, de dia, triste, alegre — procuro-te.
Eugénio de Andrade
Harmonioso vulto que em mim se dilui.
Tu és o poema
e és a origem donde ele flui.
Intuito de ter. Intuito de amor
não compreendido.
Fica assim amor. Fica assim intuito.
Prometido.
Natália Correia
sophia de mello breyner andresen