Falta a luz dos teus olhos na paisagem:
O oiro dos restolhos não fulgura.
Os caminhos tropeçam, à procura
Da recta claridade dos teus passos.
Os horizontes, baços,
Muram a tua ausência.
Sem transparência,
O mesmo rio que te reflectiu
Afoga, agora, o teu perfil perdido.
Por te não ver, a vida anoiteceu
À hora em que teria amanhecido.
Miguel Torga, Diário IX
O fio de Ariadne atravessa o labirinto da Vida, de cada vida. Um desassossego constituído em Saber como um gigantesco minotauro.
Mas não é fragmentando o homem pelas diversas ciências que apanhamos o Touro.
O fio- incerteza de uma audácia- deve constituir-se em fluídas sugerências conduzindo ao auto-conhecimento.
A dúvida é a pedra-de-toque da verdade, o ácido que dissolve os erros.
Koyré
Não existe sagrado fora do homem.
Frei Bento
A esteticização generalizada do mundo e da vida assume-se hoje liberta do fantasma do ressentimento ou da figura trágica e dolorosamente verdadeira do niilismo. Mas, na realidade, o actual e pós-moderno hedonismo individualista, o narcisismo culto e cultivado, co-extensivo à nova religião do corpo, do desejo e dos sentidos, mais não faz que, ao mesmo tempo, traduzir e exprimir a inevitável necessidade de revolta e protesto, subvertendo a ordem estabelecida ao longo de séculos de recalcamento, esquecimento e denegação dessa dimensão oculta e até agora apenas tolerada na sua vertente amortecida, isto é sublimada. O que sucede agora é que os novos códigos mitológicos e os novos dispositivos ideológicos não apenas possibilitam, como potenciam e caucionam uma transformação global e radical do sistema de valores e vivências significantes, o que, todavia, não deixa de poder ser reduzida, no posto que se trata de uma reacção indiscriminada e evasiva contra tudo aquilo que nega ou quer negar; um mero jogo de prazeres acéfalos, por certo "extremamente gratificante" e" cheio de estilo", mas nunca, na verdade, uma procura pela reconversão profunda do Homem, do Mundo e da Vida, isto é, propriamente, uma autêntica Estética da existência e não uma mera arte erótica.
João Carlos Silva, Também Aqui Moram os Deuses, Chiado Editora, p 171
A mão
que entregava à tua
os primeiros sinais de verão
já não sabe o caminho- é como se
em vez de aprender fosse cada vez mais
e mais ignorante. Ou ignorar
fosse todo o saber.
Eugénio de Andrade
Sob a aparente simplicidade, a pergunta de Platão sobre "O que é?" esconde a complexa problemática acerca do Saber.
Ora, em Platão, o Saber é a finalidade única duma vida digna, só ele institui um projecto de educação dos cidadãos.
A virtude é saber, diz Platão.
Caminhais em direcção da solidão. Eu, não, eu tenho os livros.
Marguerite Duras
Encarar a vida pela frente... Sempre... Encarar a vida pela frente, e vê-la como ela é... Por fim, entendê-la e amá-la pelo que ela é... E depois deixá-la seguir... Sempre os anos entre nós, sempre os anos... Sempre o amor... Sempre a razão... Sempre o tempo... Sempre... As horas.
Virginia Woolf
São várias as tonalidades do pensar de Vergílio Ferreira. Oferece-nos, no seu embate com o mundo, o fundamento incognoscível de nós; e a sua mutabilidade.
Faz sentir que a palavra é um impossível ou chega sempre tarde, porque não decide do originário em si mesmo mas dos arranjos que a tornam apresentável.
O impensável ou indiscutível subjaz portanto a todo o pensar e, para além dele, ao sentir, e para lá do sentir, ao substracto do que os infinitos possíveis em nós possibilitaram. E é sobre isso que se determina o nosso equilíbrio interno, harmonizado pela nossa liberdade.
O que é que muda em nós quando mudamos? De idade, de condição, às vezes mesmo de um local? Podem manter-se os mesmos valores, ideologia, relação com a vida. E, todavia, aí mesmo, alguma coisa pode mudar.É a mudança que se opera no indizível de nós, onde mora a organização disso tudo, ou seja, o equilíbrio disso tudo. Os valores reordenam-se numa outra ordenação, num outro escalonamento, num modo diverso de os perspectivarmos. Os valores podem permanecer, mas não na face que era a sua ou o lugar que era o seu. E com isso em nós a porção de alma que lhe demos. Ou a aceleração do ritmo da nossa excitação. Não se entenderá assim que a mesma obra seja diferente como a arrumação diferente dos móveis de uma sala? Porque uma obra é o que é, mais o modo de a fazermos ser o que nela somos nós. Mas esse modo é o que ela é afinal. Que é que muda em nós quando mudamos? Uma forma diferente de sermos o mesmo. As vagas do mar. Um céu que se descobre. A pele que se enruga. O ângulo do olhar.
Vergílio Ferreira, Pensar, Bertrand Editora, pp 88-89
leio e abandono-me. Não ao livro, mas a mim.
Fernando Pessoa
A Literatura não é teoria, é paixão.
Tzvetan Todorov
Espero sempre por ti o dia inteiro,
Quando na praia sobe, de cinza e oiro,
O nevoeiro
E há em todas as coisas o agoiro
De uma fantástica vinda
Sophia de Mello Breyner Andresen
Se me esqueceres, só uma coisa, esquece-me bem devagarinho.
Mário Quintana
Desvio dos teus ombros o lençol
que é feito de ternura amarrotada,
da frescura que vem depois do Sol,
quando depois do Sol não vem mais nada...
Olho a roupa no chão: que tempestade!
há restos de ternura pelo meio,
como vultos perdidos na cidade
em que uma tempestade sobreveio...
Começas a vestir-te, lentamente,
e é ternura também que vou vestindo,
para enfrentar lá fora aquela gente
que da nossa ternura anda sorrindo...
Mas ninguém sonha a pressa com que nós
a despimos assim que estamos sós!
David Mourão Ferreira, Infinito Pessoal ou A Arte de Amar
Gosto de olhar Em Busca do Tempo Perdido, como uma obra de retratos. Proust era dotado de um dom de observação agudo e através dele descreve primorosamente o ser das suas personagens, colocando-as no Tempo. Com a sua imaginação transfiguradora, preenche-as de cor e palavras, adensando os retratos que representam a sociedade do seu tempo.
Um pintor retratista que faz da literatura uma crónica do Tempo.
A face humana é igual à daqueles deuses orientais: várias faces sobrepostas em diferentes planos, e é impossível ver todas elas de uma só vez.
sophia de mello breyner andresen