Não aprendi a colher a flor
sem esfacelar as pétalas.
Falta-me o dedo menino
de quem costura desfiladeiros.
Criança, eu sabia
suspender o tempo,
soterrar abismos
e nomear as estrelas.
Cresci,
perdi pontes,
esqueci sortilégios.
Careço da habilidade da onda,
hei-de aprender a carícia da brisa.
Trémula, a haste
me pede
o adiar da noite.
Em véspera da dádiva,
a faca me recorda, no gume do beijo,
a aresta do adeus.
Não, não aprenderei
nunca a decepar flores.
Quem sabe, um dia,
eu, em mim, colha um jardim?
Mia Couto
Amor é mais do que dizer.
Por amor no teu corpo fui além
e vi florir a rosa em todo o ser
fui anjo e bicho e todos e ninguém.
Como Bernard de Ventadour amei
uma princesa ausente em Tripoli
amada minha onde fui escravo e rei
e vi que o longe estava todo em ti.
Beatriz e Laura e todas e só tu
rainha e puta no teu corpo nu
o mar de Itália a Líbia o belvedere.
E quanto mais te perco mais te encontro
morrendo e renascendo e sempre pronto
para em ti me encontrar e me perder.
Manuel Alegre, Obra Poética
No espaço de poucos minutos, éramos obrigados a bater em retirada e a abandonar a bacia de areia onde rolavam torvelinhos de espuma. O dançarino acompanhou-nos, e viemos a descobrir assim que não era nem louco nem mudo. (...) Estudara simultaneamente dança e escultura em Santiago, depois expatriara-se para os antípodas. O problema do tempo obcecava-o. A dança, arte do instante, efémera por natureza, não deixa vestígios e sofre de não poder enraizar-se em qualquer continuidade. A escultura, arte da eternidade, desafia o tempo e procura materiais indestrutíveis. Mas, com isso, é a morte que acaba por descobrir, porque o mármore possui uma evidente vocação funerária. Nas costas da Mancha e do Atlântico, Lagos (o dançarino) descobrira o fenómeno das marés governado pelas leis astronómicas. Ora a maré ritma os jogos do dançarino de praia, e ao mesmo tempo convida-o à prática de uma escultura efémera.
- As minhas esculturas de areia vivem, afirmava ele, e a prova é que morrem. É o contrário da estatuária dos cemitérios, eterna por não ter vida.
Michel Tournier, Uma Ceia de Amor
(Obrigada, Olga)
Os dias talvez sejam iguais para um relógio, mas não para um homem.
Marcel Proust
Ver-te é como ter à minha frente todo o tempo
Ruy Belo
Escuta, escuta: tenho ainda
uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai
salvar o mundo, não mudará
a vida de ninguém – mas quem
é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido
da vida de alguém?
Escuta-me, não te demoro.
É coisa pouca, como a chuvinha
que vem vindo devagar.
São três, quatro palavras, pouco
mais. Palavras que te quero confiar.
Para que não se extinga o seu lume,
o seu lume breve.
Palavras que muito amei,
que talvez ame ainda.
Elas são a casa, o sal da língua.
Eugénio de Andrade
Quando as palavras se tornam pouco claras, foco com fotografias.
Quando as imagens se tornam inadequadas, contento-me com o silêncio.
Ansel Adams ( 1902-1984), fotógrafo americano.
Montaigne, fidalgo pensador do século XVI, oferece-nos no seu jeito irónico a seguinte passagem:
Quando os Godos saquearam a Grécia, o que salvou as bibliotecas de serem incendiadas foi ter um deles espalhado a ideia de que era preciso deixar intacto aos inimigos o motivo que os afastava dos exercícios militares e os distraía com ocupações sedentárias e ociosas.
Montaigne, Três Ensaios, Passagens, p.29
Proposta de um modelo educativo. Sintomas de vida.
Curva-te apenas para amar.
René Char
Marcus Tullius Cícero (106 a.C-43 a.C) foi escritor, filósofo e orador romano. Deixou profunda matéria sobre Retórica, aproxima-a da Filosofia e, pela sua revalorização, contraria a tradição filosófica grega.
No Orador, Cícero define as três tarefas do orador: quid dicat, quid-que loco, quo modo- que dizer, com que ordem, de que forma.
Este homo nouus- acusação grave na época- explica de forma clara que todas as partes concorrem para a obtenção da vitória da acção de falar em público.
Assim definida, a Retórica é uma arte da oratória que submete as regras da linguagem à expressividade do corpo e à teatrealidade da palavra.
Com Cícero percebemos que qualquer discurso é para além de escutado, observado. Com Cícero, o corpo fala.
Assim como o rosto é a imagem da alma, assim os olhos são os intérpretes.
Cícero, Orador
Júlio Resende (1917-2011). Um homem universal. Pintor.
Fica a obra.
Ribeira Negra (1984, Porto)
Voo das Aves (1995/96)
A verdade é insatisfeita, destrói-se ininterruptamente para dar lugar a outra verdade, tal os mitos, que duram só até outros nascerem.
Fernando Namora
... assim é a voz do poeta: um fio de silêncio costurando o tempo.
Mia Couto
sophia de mello breyner andresen