O mar, em Torga. No Diário IV.
...um verso azul feito de espuma,
E de fúria e de bruma,...
Do bico de uma chaleira bojuda um pouco cansada escapava-se um leve vapor. Dessa estranha locomotiva imóvel exalavam-se assobiando todos os perfumes do mundo, das montanhas vermelhas da China às montanhas azuis da Índia, das veredas afegãs às pistas do deserto, dos poços africanos às margens egípcias. De repente compreendi que a chaleira tinha percorrido uma viagem muito longa. Tinha seguido as caravanas para se meter na poeira dos caminhos traçados pelos nómadas. Era ao mesmo tempo dragão e diligência, locomotiva e caixa de Pandora.
Teria eu medo de lhe levantar a tampa para nela encontrar algum segredo que não me era destinado?
Gilles Brochard, Pequeno Tratado Do Chá
(Obrigada, José)
Há em mim um sossego de infância e de província.
Era uma vez, lá na Judeia, um rei.
Feio bicho, de resto:
Uma cara de burro sem cabresto
E duas grandes tranças.
A gente olhava, reparava e via
Que naquela figura não havia
Olhos de quem gosta de crianças.
E, na verdade, assim acontecia.
Porque um dia,
O malvado,
Só por ter o poder de quem é rei
Por não ter coração,
Sem mais nem menos,
Mandou matar quantos eram pequenos
Nas cidades e aldeias da nação.
Mas, por acaso ou milagre, aconteceu
Que, num burrinho pela areia fora,
Fugiu
Daquelas mãos de sangue um pequenito
Que o vivo sol da vida acarinhou;
E bastou
Esse palmo de sonho
Para encher este mundo de alegria;
Para crescer, ser Deus;
E meter no inferno o tal das tranças,
Só porque ele não gostava de crianças.
Miguel Torga
Somos quem se apresse.
Do tempo a passada
tornai-a por nada
no que permanece.
Tudo o que acelera
foi depressa e vão,
no que fica espera
nossa iniciação.
Ao tentardes voo,
juvenil ardor
não gasteis em vão.
Tudo repousou:
o livro e a flor,
luz e escuridão.
R. M. Rilke, Os Sonetos a Orfeu, Quetzal,p.30
Por entre o frio das estrelas fixas,
Procuro entender a natureza das andorinhas.
Em segredo cúmplice com os sentidos.
Uma vez perguntaram ao Hemingway se ele acreditava em Deus.
- Às vezes, à noite.
Provérbio húngaro: Na cova do lobo não há ateus.
Todo o ser humano é um estranho ímpar.
Carlos Drummond de Andrade
Cada dia é mais evidente que partimos
Sem nenhum possível regresso no que fomos,
Cada dia as horas se despem mais do alimento:
Não há saudades nem terror que baste.
Sophia de Mello Breyner Andresen
Eu contarei a beleza das estátuas -
Seus gestos imóveis ordenados e frios -
E falarei do rosto dos navios
Sem que ninguém desvende outros segredos
Que nos meus braços correm como rios
E enchem de sangue a ponta dos meus dedos.
Sophia de Mello Breyner Andresen, No tempo divivido (1954)
A Montanha Mágica, obra publicada em 1924, é uma narrativa extensa atravessada pelo Tempo e sempre de olhos postos na cultura europeia. A partir das altas montanhas, o Tempo é a figura central desta obra envolvente sobre o ser-se homem na sua totalidade; e a morte como aprendizagem definitiva.
Diz Thomas Mann:
...para a vida há dois caminhos: um é o usual, directo e ajuizado. O outro é mau, ele passa pela morte e este é o caminho genial.
Porque o bosque é tranquilo,
(como se tivesse sido organizado por
um poeta chinês antigo.) Ramos castanhos
recebem o vento incolor com a alegria
da tela que recebe as mais intensas tintas.
Vento tão lento que parece um provérbio natural. Os instantes existem,
mas parecem recuperáveis. Nem o tempo se perde, ali,
onde nenhum ruído da cidade entra.
Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem à Índia, Caminho, p.386
A procura de significado para a existência humana é uma constante na história dos homens. Na contemporaneidade, os trilhos percorridos têm oscilado entre a alienação e a coisificação materialista e as perspectivas de espiritualidade duvidosa. Os alicerces da casa do Ser no nosso presente, são areias movediças.
Dentro deste contexto, a leitura da obra O Sentido Na Vida da filósofa estaduniense Susan Wolf contribui para a clarificação de questões intemporais.
Neste texto compreendemos que a resposta à questão O que é uma vida com sentido? deve ser procurada nos meandros de cada singularidade concreta, nas complexas relações da experiência quotidiana. É no campo da acção e das escolhas pessoais que o conceito de Felicidade se actualiza.
Um livro de leitura fácil; um debate filosófico em registo de papel.
Uma vida com sentido é uma vida activamente empenhada em valores objectivos. Mas estes valores são-nos familiares: são os valores estéticos, éticos e cognitivos. Uma forma de não compreender o problema do sentido da vida é pensar que tudo depende da existência de um valor especial — diferente de todos os valores estéticos, éticos e cognitivos que nos são familiares.
Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não, do tamanho da minha altura...
Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe
de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos
nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.
Alberto Caeiro, O Guardador de Rebanhos
As árvores como os livros têm folhas
e margens lisas ou recortadas,
e capas (isto é copas) e capítulos
de flores e letras de oiro nas lombadas.
E são histórias de reis, histórias de fadas,
as mais fantásticas aventuras,
que se podem ler nas suas páginas,
no pecíolo, no limbo, nas nervuras.
As florestas são imensas bibliotecas,
e até há florestas especializadas,
com faias, bétulas e um letreiro
a dizer: «Floresta das zonas temperadas».
É evidente que não podes plantar
no teu quarto, plátanos ou azinheiras.
Para começar a construir uma biblioteca,
basta um vaso de sardinheiras.
Jorge Sousa Braga, Herbário, Assírio & Alvim, 1999
sophia de mello breyner andresen