O utilitarismo de Stuart Mill proclama que a moralidade das acções depende da utilidade, isto é, das suas consequências. São morais as acções que respeitam o Princípio da Maior Felicidade, as que se traduzem por uma maior felicidade para o maior número possível de pessoas.
J. Rawls em Teoria da Justiça, critica o utilitarismo. Este excerto é disso exemplo.
Toda a pessoa possui uma inviolabilidade baseada na justiça, a qual não pode ser atropelada em nome do bem-estar do conjunto da sociedade.
Por esta razão a justiça proíbe que a perda de liberdade de alguns possa ser justificada pelo facto de que outros obtêm um maior bem-estar. Ela não permite que os sacrifícios impostos a uns poucos possam ser compensados pelo aumento dos benefícios obtidos por muitos.
Portanto, numa sociedade justa, as liberdades de igual cidadania consideram-se como definitivamente estabelecidas, os direitos assegurados pela justiça não estão sujeitos a negociações políticas, nem ao cálculo de interesses sociais.
A única coisa que nos permite assentir a uma teoria errónea é a falta de outra melhor; do mesmo modo uma injustiça só é tolerável quando ela é necessária para evitar outra injustiça ainda maior.
Sendo as primeiras virtudes das actividades humanas, a verdade e a justiça não podem estar sujeitas a transações.
O desafio do Ser? Pensar. Interpelação- subjectiva e objectiva- que afronta a luminosidade do lusco-fusco da existência.
Como é hábito, passarei pela Feira do Livro de Lisboa. Acrescento dois autores à lista que me acompanhará no intenso périplo que todos os anos actualiza este ritual:
O Teu Rosto Será o Último, de João Ricardo Pedro; Nobreza de Espírito- Um Ideal Esquecido e Eterno Retorno do Fascismo, de Rob Riemen.
Rotinas primaveris que renovam, em cada ano, o desejo de permanecer no sentido das palavras.
E acrescentou: – É belo o mar, e o vento é bom, as aves marinhas fazem os ninhos. Partamos, Mestre, rumo ao país para além das vagas.
– Partamos – disse o velho pintor. Wang-Fô tomou o leme e Ling dobrou-se sobre os remos. A cadência das pás voltou a encher toda a sala, firme e regular como o bater de um coração. O nível da água diminuía sensivelmente à volta dos enormes rochedos verticais que de novo se volviam em colunas. Não tardou que apenas raras poças brilhassem nas depressões do lajedo de jade. As vestes do cortesãos estavam secas, mas o Imperador retinha alguns flocos de espuma na franja do seu manto.
O rolo terminado por Wang-Fô estava pousado sobre uma mesa baixa. O primeiro plano era todo ele ocupado por um barco. E afastava-se a pouco e pouco, deixando atrás de si um leve sulco que logo se fechava no mar imóvel. Já não se distinguia o rosto dos dois homens sentados na canoa. Mas avistava-se ainda o lenço vermelho de Ling, e a barba de Wang-Fô ondulava ao vento.
A pulsação dos remos amainou, depois quedou-se, sumida na distância. O Imperador, inclinado em frente, com a mão sobre os olhos, via afastar-se o barco de Wang, que mais não era que uma mancha imperceptível na palidez do crepúsculo. Uma neblina de ouro ergueu-se e alastrou sobre o mar. Até que o barco contornou um rochedo que fechava a entrada dos oceanos; a sombra de uma falésia abateu-se sobre ele; o sulco apagou-se da superfície deserta, e o pintor Wang-Fô e o seu discípulo Ling desapareceram para sempre naquele mar de jade azul que Wang-Fô ali mesmo inventara.
Os eunucos trouxeram respeitosamente a pintura incompleta em que Wang-Fô traçara a imagem do mar e do céu. Wang-Fô secou as lágrimas e sorriu, pois aquele pequeno esboço recordava-lhe a juventude. Tudo nele atestava uma frescura de alma que Wang-Fô já não podia pretender, mas faltava-lhe porém qualquer coisa, pois na época em que Wang o pintara não contemplara ainda quantas montanhas, nem quantos rochedos mergulhando no mar os seus flancos nus houvera de contemplar, nem se deixara penetrar quanto devia pela tristeza do crepúsculo. Wang-Fô escolheu um dos pincéis que um escravo lhe estendia e começou a espalhar no mar inacabado largas golfadas azuis. Um eunuco acocorado a seus pés preparava as tintas; desempenhava-se bastante mal desta tarefa, e mais do que nunca Wang-Fô chorou o seu discípulo Ling.
Wang começou por tingir de rosa a ponta da asa de uma nuvem pousada numa montanha. Depois acrescentou à superfície do mar pequenas rugas que tornavam ainda mais profundo o sentimento da sua serenidade. O pavimento de jade tornava-se singularmente húmido, mas Wang-Fô, absorto na sua pintura, não se apercebia de que trabalhava sentado na água.
A frágil canoa, que engrossara sob as pinceladas do pintor, ocupava agora todo o primeiro plano do rolo de seda. O ruído cadenciado dos remos ergueu-se subitamente ao longe, rápido e vivo como um bater de asa. O ruído aproximou-se, encheu mansamente toda a sala, depois quedou-se, e havia gotas trémulas, imóveis, suspensas das pás dos remos. Há muito que o ferro em brasa destinado aos olhos de Wang se apagara no braseiro do carrasco. Com água pelos ombros, os cortesãos, imobilizados pela etiqueta, erguiam-se em bicos de pés. A água atingiu finalmente o nível do coração imperial. Tão pro- fundo era o silêncio que se ouviria rolar uma lágrima.
Era mesmo Ling. Trazia a sua velha túnica de todos os dias, e na manga direita mostrava ainda os vestígios de um rasgão que não tivera tempo de consertar, de manhãzinha, antes da chegada dos soldados. Trazia em volta do pescoço um estranho lenço vermelho.
Wang-Fô disse-lhe baixinho, continuando a pintar: – Julgava-te morto. – Vivendo vós – disse Ling respeitosamente –, como poderia eu morrer? E ajudou o mestre a subir para o barco. O tecto de jade reflectia-se na água, de tal modo que Ling parecia navegar no interior de uma gruta. As tranças dos corte- sãos submersos ondulavam à superfície como serpentes, e a pálida cabeça do Imperador flutuava como um lótus.
Olha, meu discípulo – disse Wang-Fô com melancolia. – Estes desgraçados vão perecer, se acaso não pereceram já. Não supunha que houvesse água bastante no mar para afogar um Imperador. Que faremos nós?
– Nada temas, Mestre – murmurou o discípulo. – Breve se encontrarão em seco e nem sequer se recordarão que alguma vez se lhes molhou a manga. Só o Imperador há-de guardar no coração um resto de marinha amargura. Esta gente não foi feita para se perder no interior de uma pintura.
Quanto tempo Portugal vai estar assim? Uma pergunta humanista que resulta da colocação de dilemas morais do presente. Dilemas do homem comum, não da classe dirigente. Hoje, no Público.
A pergunta só é crucial para alguns, não é para todos e é por isso que (...) só é uma pergunta para quem não vive bem, ou vive cada vez pior.
(...)
O resultado é um abismo psicológico cada vez maior que vai tornar Portugal numa sociedade ainda mais dual do que já era, duas partes que sentem diferente, agem diferente e vivem diferente.
Numa sociedade já muito descalçada e fragmentada, este abismo entre pessoas e grupos sociais vai coalescer os fragmentos, um para cada lado, mas não os vai aproximar.
(...)
É por isso que anda um Portugal lá fora desiludido, revoltado, deprimido, sem esperança, nem sentido, que, ou cai na mais completa anomia e submissão, ou esbraceja sem sentido contra tudo e contra todos. É a grande tragédia da política democrática é que essas pessoas estão sós, não contam com ninguém a não ser com os restos que ainda subsistem de genuina solidariedade social, e do que sobra da família, estilhaçada pela engenharia " fracturante" das últimas décadas. A elite dirigente, política e económica, sabe pouco desse sentimento de solidão, e, pior ainda, sabe cada vez menos, porque os modos de vida se separam todos os dias, entre o conforto do poder e a devastação da pobreza. O rasgão que isto está a fazer num Portugal já muito puído será muito difícil de remendar.
José Pacheco Pereira. Historiador.
O rei D. Manuel ordena em 1497 a extinção e a proibição do judaísmo. As sinagogas foram fechadas e tornadas templos cristãos. Tempos de ventos ideologicamente repressores e violentos. O cronista Garcia de Resende, contemporâneo destes acontecimentos de terror inquisitorial, descreve-os assim:
Os judeus vi cá tornados
todos num tempo cristãos
os Mouros então lançados
fora do reino passados
e o reino sem pagão;
vimos synagogas mezquitas
em que sempre eram ditas
e pregadas heresias,
tornados em nossos dias
Igrejas santas benditas.
Adaptação a partir do livro de Elias Lipiner, Terror e Linguagem.
Aquele que na hora da vitória
respeitou o vencido
Aquele que deu tudo e não pediu a paga
Aquele que na hora da ganância
Perdeu o apetite
Aquele que amou os outros e por isso
Não colaborou com a sua ignorância ou vício
Aquele que foi «Fiel à palavra dada à ideia tida»
como antes dele mas também por ele
Pessoa disse
Sophia de Mello Breyner Andresen
Contribuir para que passe o vento de um pensamento diferente.
José Gil
O silêncio conspirador do nosso quotidiano.
Aqui.
A imensidão do universo suscita, insistentemente, perguntas pelo sentido da existência. Logo a nós, que somos uma extravagância do universo. Impressões recebidas duma Segunda-feira de mansas nuances.
Bem diz João Carlos Silva na obra Também Aqui Moram Os Deuses: é no Homem que o Universo morde a cauda.
No tempo parado, há um embate de vozes reais no espelho imaginário em que nos vemos; vozes do esquecimento e da memória.
Em cada domingo, arrastamos o corpo até à alma.
Entre pinheiros
três casas.
Uma azenha parada.
Uma torre erguida
de fraga em fraga
contra o céu de cal.
E um silêncio talhado
para o voo de um moscardo
alastra de casa em casa,
sobe à torre abandonada
e sobe a azenha parada
tomba desamparado.
Eugénio de Andrade, Obra de Eugénio de Andrade / 1 – Primeiros Poemas, Porto,
Fundação Eugénio de Andrade, 2004
O Mestre Celeste estava sentado num trono de jade, e tinha as mãos engelhadas como as de um velho, embora ele mal contasse vinte anos. A sua túnica era azul para figurar o Inverno, e verde para lembrar a Primavera. O seu rosto era belo, mas impassível como um espelho colocado demasiado alto, que apenas reflectisse os astros e o céu implacável. Dava a direita ao Ministro dos Prazeres Perfeitos e a esquerda ao Conselheiro dos Justos Tormentos. Como os seus cortesãos, alinhados junto às colunas, apuravam o ouvido para sorver a mínima palavra saída dos seus lábios, adquirira o hábito de falar sempre em voz baixa.
– Dragão Celeste – disse Wang-Fô prosternado –, sou velho, sou pobre, sou fraco. Tu és como o Verão; eu sou como o Inverno. Tu tens Dez Mil Vidas; eu tenho uma só, prestes a acabar. Que te fiz eu? Ataram-me as mãos, que jamais te prejudicaram.
– Perguntas-me que foi que me fizeste, velho Wang-Fô? – disse o Imperador.
A sua voz era tão melodiosa que dava vontade de chorar. Ergueu a mão direita, que os reflexos do chão de jade faziam mostrar-se glauca como planta submarina, e Wang-Fô, maravilhado pelo comprimento daqueles dedos esguios, procurou nas suas recordações se acaso não fizera do Imperador ou dos seus ascendentes algum retrato medíocre que merecesse a morte. Mas era pouco provável, porquanto, até então, Wang-Fô pouco frequentara a corte dos imperadores, preferindo as cabanas dos camponeses ou, nas cidades, os bairros das cortesãs e as tabernas junto aos cais onde brigam os carrejões.
– Perguntas-me que foi que me fizeste, velho Wang-Fô? – tornou o Imperador, inclinando o pescoço delicado para o velho que o escutava. – Vou-to dizer. Mas como o veneno dos outros apenas pode penetrar em nós pelas nossas nove aberturas, para te conduzir à presença dos teus erros tenho de passear-te pelos corredores da minha memória e contar-te toda a minha vida. Meu pai reunira uma colecção das tuas pinturas no aposento mais secreto do palácio, pois entendia que as personagens dos quadros devem ser subtraídas à vista dos profanos, na presença dos quais não podem baixar os olhos. Foi nestas salas que fui criado, velho Wang-Fô, pois haviam organizado a solidão à minha volta para me permitirem crescer nela. Para evitar à minha candura o contágio das almas humanas, haviam afastado de mim a agitada torrente dos meus futuros súbditos, e não era permitido a ninguém passar à soleira da minha porta, não fosse a sombra desse homem ou dessa mulher estender-se até mim. Os poucos velhos servos que me haviam destinado mostravam-se o menos possível; as horas giravam em círculo; as cores das tuas pinturas acendiam-se com a alvorada e empalideciam ao crepúsculo. De noite, quando não conseguia dormir, olhava-as e, durante cerca de dez anos, olhei-as todas as noites. De dia, sentado num tapete cujo desenho conhecia de cor, repousando as minhas mãos vazias nos meus joelhos de seda amarela, sonhava com as alegrias que o futuro me traria. Imaginava o mundo, com o país de Han ao meio, semelhante à cava e monótona planície da mão sulcada pelas linhas fatais dos Cinco Rios. A toda a volta, o mar onde nascem os monstros e, mais longe ainda, as montanhas que sustentam o céu. E para me ajudar a imaginar todas estas coisas, servia-me das tuas pinturas. Levaste-me a crer que o mar era semelhante à imensa toalha de água desdobrada nas tuas telas, tão azul que pedra que nele caísse só em safira se podia tornar, que as mulheres se abriam e fechavam como flores, iguais às criaturas que avançam, levadas pelo vento, nas áleas dos teus jar- dins, e que os jovens guerreiros de corpo esguio postados nas fortalezas das fronteiras eram flechas capazes de trespassar corações. Aos dezasseis anos vi abrirem-se as portas que me separavam do mundo: subi ao terraço do palácio para olhar as nuvens, mas eram menos belas do que as dos teus crepúsculos. Mandei vir a minha liteira: sacudido por estradas de cuja lama e de cujas pedras não suspeitava, percorri as províncias do Império sem encontrar os teus jardins cheios de mulheres como vaga-lumes, dessas tuas mulheres cujo corpo é em si mesmo um jardim. Os seixos das praias aborreceram-me dos oceanos; o sangue dos supliciados é menos vermelho que a romã figurada nas tuas telas; a escória das aldeias impede-me de ver a beleza dos arrozais; a carne das mulheres vivas repugna-me como a carne morta que pende dos ganchos dos açougueiros e o riso espesso dos meus soldados dá-me volta ao coração. Mentiste-me, Wang-Fô, velho impostor: o mundo mais não é do que um amontoado de manchas confusas, lançadas no vazio por um pintor insensato, que as nossas lágrimas apagam sem cessar. O reino de Han não é o mais belo dos rei- nos, e eu não sou o Imperador. O único império sobre o qual valha a pena reinar é aquele em que tu penetras, velho Wang, pelo caminho das Mil Curvas e das Dez Mil Cores. Só tu reinas em paz sobre montanhas cobertas de uma neve que jamais fundirá e sobre campos de nar- cisos que jamais hão-de morrer. Por isso mesmo, Wang-Fô, procurei que suplício te houvera de reservar, a ti cujos sortilégios me desgostaram daquilo que possuía e me deram o desejo daquilo que não possuirei nunca. E para te encerrar na única masmorra donde não pudesses sair, decidi que haviam de queimar-te os olhos, porque os teus olhos, Wang-Fô, são as duas portas mágicas que te abrem o teu reino. E porque as tuas mãos são as duas estradas de dez caminhos que te conduzem ao coração do teu império, decidi que haviam de cortar-te as mãos. Compreendeste, velho Wang-Fô?
Sem a memória, o coração ficaria vazio.
Em qualquer paisagem, em qualquer recinto onde abarcam os olhos, o número de coisas visíveis é praticamente infinito, mas nós só podemos ver, em cada instante, um número muito reduzido delas.
Todo o ver é, pois, olhar; todo o ouvir, um escutar e, em geral, toda a nossa capacidade de conhecer é um foco luminoso, uma lanterna que alguém, posto atrás dela, dirige a um ou outro quadrante do Universo, repondo sobre a imensa e passiva face do cosmos aqui a luz, ali a sombra.
Adaptado de Ortega y Gasset, Coração e cabeça.
A Persistência da Memória, Salvador Dali (1931)
Ítaca. Um percurso de fragmentos íntimos e ínfimos de nós, revelando que a felicidade não existe alhures.
Rumos que mostram que no fim, em cada viagem, há sempre uma porta. A da própria errância; a do saber.
(...)
Como Ulisses ninguém volta ao que perdeu
Como Ulisses não serás reconhecido.
Não vale a pena suportar tanto castigo.
Procuras Ítaca. Mas só há esse procurar.
Onde quer que te encontres estás contigo
dentro de ti em casa na distância
onde quer que procures há outro mar
Ítaca é a tua própria errância.
Manuel Alegre, Obra Poética, Publicações D. Quixote, pág. 832
Nas cidades, nas ruas, dentro de nós. Nas tormentas do tempo.
Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.
O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba-me;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina.
Batem os carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista, exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, Sampetersburgo, o mundo!
(...)
Cesário Verde, O Sentimento de um Ocidental.
sophia de mello breyner andresen