A vida?
Gotas de luar
Gotas caídas
De gerânios a abanar.
K. Dogen, líder espiritual budista japonês.
Só um horizonte constelado de mitos completa a unidade de toda uma época de cultura, refere Nietzsche em A Origem da Tragédia.
A nossa imediaticidade quotidiana alastra-se num horizonte corrosivo e ameaçador. O humor exemplifica.
Bartoon, Luís Afonso
Público, 16 de Abril de 2012
O Estado anda preocupado com os vícios privados (benefícios públicos?) dos cidadãos. Fora isso, as farpas queirosianas laçadas em 1871 continuam certeiras, o país vive numa sonolência enfastiada.
Um dia, pelo sol poente, alcançaram os arrabaldes da cidade imperial, e Ling procurou uma estalagem onde Wang-Fô passasse a noite. O velho embrulhou-se nuns trapos e Ling deitou-se colado a ele para o aquecer, pois a Primavera mal rompera e o chão de terra batida estava ainda gelado. Pela madrugada, ecoaram pesados passos nos corredores da pousada; ouviram-se os aterrados sussurros do hospedeiro e ordens vociferadas numa língua bárbara. Ling estremeceu, lembrando-se que na véspera roubara um pastel de arroz para a refeição do mestre. Sem duvidar de que vinham para o prender, perguntou-se quem ajudaria Wang-Fô a atravessar a vau o próximo rio.
Entraram soldados com lanternas. Filtrada pelo papel sarapintado, a chama lançava-lhes clarões vermelhos ou azuis nos capacetes de couro. Vibrava-lhes ao ombro a corda de um arco e os mais ferozes atiravam súbitos rugidos descabidos. Assentaram pesadamente a mão na nuca de Wang-Fô, que não pôde deixar de reparar que as mangas das suas vestes não condiziam com a cor do manto.
Amparado pelo seu discípulo, Wang-Fô acompanhou os soldados tropeçando por caminhos acidentados. Aos magotes, o populacho troçava daqueles dois criminosos que levavam certamente a decapitar. A todas as perguntas de Wang, os soldados respondiam com um esgar selvagem. As suas mãos agrilhoadas sofriam, e Ling, desesperado, olhava o mestre, sorrindo, o que, para ele, era uma maneira mais terna de chorar.
Chegaram à entrada do palácio imperial, cujos muros cor de violeta se erguiam em pleno dia como uma faixa de crepúsculo. Os soldados conduziram Wang-Fô através de um sem-fim de salas quadradas ou circulares cuja forma simbolizava as estações, os pontos cardeais, o macho e a fêmea, a longevidade, as prerrogativas do poder. As portas giravam sobre si mesmas soltando uma nota de música, e a sua disposição era tal que se percorria toda a gama atravessando o palácio de nascente para poente. Tudo se concertava para dar a ideia de um poderio e de uma subtileza sobre-humanos, e sentia-se que as mínimas ordens aqui pronunciadas haviam de ser definitivas e terríveis como a sabedoria dos antepassados.
Até que o ar se rarefez; tão profundo se tornou o silêncio que nem sequer um supliciado se atreveria a gritar. Um eunuco arredou um cortinado; os soldados tremeram como mulheres, e aquele pequeno exército entrou na sala donde dominava o Filho do Céu.
Era uma sala desprovida de paredes, sustentada por sólidas colunas de pedra azul. Para além dos fustes de mármore desabrochava um jardim, e cada flor contida no arvoredo pertencia a alguma espécie rara trazida de além-mar. Mas nenhuma delas tinha perfume, não fosse a doçura dos aromas alterar a meditação do Dragão Celeste. Por respeito ao silêncio em que mergulhavam os seus pensamentos, nenhuma ave fora admitida no interior do recinto e até as abelhas haviam sido escorraçadas. Um muro altíssimo separava o jardim do resto do mundo, para que o vento, que sopra sobre os cães mortos e os cadáveres dos campos de batalha, se não permitisse aflorar a manga do Imperador.
Diz Tolstoi que a arte não é nem a manifestação da ideia de belo nem um jogo que serve para descarregar a energia acumulada. A arte, para este grande escritor russo, é uma forma de as pessoas se relacionarem, indispensável à vida e ao progresso da humanidade.
Em Creta, com o Minotauro,
sem versos e sem vida,
sem pátrias e sem espírito,
sem nada, nem ninguém,
que não o dedo sujo,
hei-de tomar em paz o meu café.
Jorge de Sena, Antologia Poética, Guimarães, pág. 194
A política ocupa-se do que há de mais precioso, a vida. Conquistámos, através do seu exercício e ao longo dos séculos, um bem supremo- a dignidade humana.
O nosso tempo actualiza uma ideia sugerida por Kant: uma sociedade liberal pode ser constituída por demónios desde que sejam racionais. Sentem-se e sentam-se em todas as cadeiras e o vislumbre é duma feiúra desmesurada. Hoje, mais do que nunca, alhearmo-nos da dimensão política é desistir do Homem.
Os dias?
Pequenos desejos, vagarosas saudades, silenciosas lembranças, diz Cecília Meireles.
E nesta soma se faz o tempo.
Havia anos que Wang-Fô sonhava fazer o retrato de uma princesa de outrora tocando alaúde debaixo de um salgueiro. Não havia mulher suficientemente irreal para lhe servir de modelo, mas Ling podia fazê-lo, porquanto não era mulher. Depois, Wang-Fô falou em pintar um jovem príncipe disparando o arco ao pé de um enorme cedro. Não havia mancebo do tempo presente suficientemente irreal para lhe servir de modelo, mas Ling pediu a sua própria mulher para posar debaixo da ameixeira do jardim. Mais tarde, Wang-Fô pintou-a vestida de fada por entre as nuvens do poente, e aquela mulher jovem chorou, pois aquilo era um presságio de morte. Depois que Ling preferia a ela própria os retratos que Wang-Fô dela fazia, o seu rosto esmaecia como a flor à mercê do vento quente ou das chuvas de Verão. Certa manhã, encontraram-na enforcada nos ramos da ameixeira rosa: as pontas do xaile que a afogava flutuavam entrançadas nos seus cabelos; parecia mais delgada ainda que habitualmente, e pura como as donzelas dos poemas de tempos idos. Wang-Fô pintou-a pela derradeira vez, pois gostava daquele tom verde que recobre o rosto dos mortos. O seu discípulo Ling preparava-lhe as tintas, e tanta aplicação lhe merecia aquela tarefa que se esqueceu de verter uma lágrima.
Ling pagou a despesa do velho pintor: como Wang-Fô não tinha dinheiro nem hospedaria onde ficar, ofereceu-lhe humildemente abrigo.
Saíram juntos; Ling segurava uma lanterna; o clarão projectava nas poças inesperados lampejos. Nessa noite, Ling soube com surpresa que os muros da sua casa não eram vermelhos, como julgara, mas sim da cor de uma laranja prestes a apodrecer. No pátio, Wang-Fô apontou a forma delicada de um arbusto, em que ninguém reparara até então, e comparou-o a uma rapariga deixando secar os cabelos. No corredor, acompanhou com enlevo a hesitante caminhada de uma formiga ao longo das fendas da parede, e o horror de Ling por esses animalejos desvaneceu-se. Então, ao compreender que Wang-Fô acabara de lhe ofertar uma alma e uma percepção novas, Ling deitou respeitosamente o velho no quarto onde seu pai e sua mãe tinham morrido.
As coisas são como são. A vida, um fluxo permanente. Sem captação.
Daí, hoje, concordar com Philip Roth, não há ninguém menos passível de ser salvo do que um sujeito bem destroçado.
no marítimo lodo da fala fazem ninho
pássaros de sal com suas asas afiadas
sulcam
o susto de ficar sozinho
e a cabeça sibilante de uma libélula esvoaça
na visão dourada do sonho o tempo circular dos dedos
no corpo as mãos em movimento de esquecidos barcos
sobre vagas de poalha estelar onde naufragam
as palavras sem nexo e repetidos gestos
devasso percursos de entorpecidas praias
algures no estilhaço rubro dos mapas abandono
o que amei já não tem importância e regresso
ao isolamento onde a treva se enche de segredos e
a voz do mar acorda o dormente coração
do adolescente marinheiro que partiu para morrer
o sonho agarra-se ao sarro das velas e
a alba fustiga os vidros da janela onde
encostei a cara para chorar como as glicínias
regresso ao cais
com este lamento ao leme os pulsos cansados
pelo brilho cortante do sal aceso no vento que transporta
e agita as silentes sombras de feras longínquas
e perfura o sono e a gestação fantástica dos lírios
magoadas águas
reflectindo cicatrizes lancinantes de néons
o cais por fim o cais onde desembarcamos e
de nossos corpos não nos lembraremos mais
Al Berto
Os sonhos afiguram-se como estradas de acesso ao inconsciente e ao cérebro onde estão despidos e sem necessidade de interpretação. Diz-se.Também, mapas e modelos de realidade virtual. Certo, certo é que não podemos não sonhar.
Hoje no Público.
Certa noite, numa taberna, teve Wang-Fô por companheiro de mesa. O velho bebera para ficar em condições de pintar mais capazmente um bêbado; a cabeça pendia-lhe de lado, como se procurasse medir a distância que separava a sua mão da chávena. A aguardente de arroz soltava a língua daquele artesão taciturno, e nessa noite Wang falava como se o silêncio fosse um muro e as palavras cores destinadas a cobri-lo. Graças a ele, Ling conheceu a beleza das caras dos bebedores esbatidas pelo vapor das bebidas quentes, o moreno esplendor das carnes desigualmente acariciadas pela língua das chamas e o delicado rosicler das nódoas de vinho que salpicavam as toalhas como pétalas murchas. Uma rabanada de vento rompeu a janela; a tempestade entrou pela sala. Wang-Fô esgueirou-se para dar a contemplar a Ling o lívido zebrado do relâmpago, e Ling, maravilhado, perdeu o medo à trovoada.
(continua no próximo domingo)
Ling não nascera para correr mundo ao lado de um velho que se apoderava da aurora e captava o crepúsculo. Seu pai era mercador de ouro; sua mãe era filha única de um negociante de jade, que lhe deixara os bens amaldiçoando-a por ela não ser rapaz. Ling crescera numa casa donde a riqueza eliminava o acaso. Aquela existência cuidadosamente calafetada tornara-o tímido: tinha medo dos insectos, do trovão e do rosto dos mortos. Ao completar quinze anos, seu pai escolheu-lhe esposa e tomou-a entre as mais belas, pois a ideia da felicidade que oferecia ao filho consolava-o de haver atingido a idade em que a noite serve para dormir. A esposa de Ling era frágil como um caniço, infantil como o leite, doce como a saliva, salgada como as lágrimas. Consumada a boda, os pais de Ling levaram a discrição ao ponto de morrerem, e o filho ficou só na casa pintada de cinábrio, na compa- nhia da sua jovem mulher, que sorria constantemente, e de uma ameixeira que todas as Primaveras se cobria de flores cor-de-rosa. Ling amou aquela mulher de coração límpido como se ama um espelho que não embaciasse, um talismã que protegesse para sempre. Frequentava as casas de chá para obedecer à moda e era moderadamente generoso para os acrobatas e as bailarinas.
sophia de mello breyner andresen