O Homem é o animal mais domesticado da natureza. A bem dizer, neste afastamento da natureza, o Homem asselvaja-se.
Em Portugal nada acontece, "não há drama, tudo é intriga e trama", escreveu alguém num graffiti ao longo da parede de uma escadaria de Santa Catarina que desce para o elevador da Bica. Nada acontece, quer dizer, nada se inscreve-na história ou na existência individual, na vida social ou no plano artístico.
Relógio D`Água, pág. 15
Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
desejasse.
Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.
Te olhei. E há um tempo.
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta
Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.
(...)
Hilda Hilst (1930- 2004)
A leitora abre o espaço num sopro subtil.
Lê na violência e no espanto da brancura.
Principia apaixonada, de surpresa em surpresa.
Ilumina e inunda e dissemina de arco em arco.
Ela fala com as pedras do livro, com as sílabas da sombra.
Ela adere à matéria porosa, à madeira do vento.
Desce pelos bosques como uma menina descalça.
Aproxima-se das praias onde o corpo se eleva
em chama de água. Na imaculada superfície
ou na espessura latejante, despe-se das formas,
branca no ar. É um torvelinho harmonioso,
um pássaro suspenso. A terra ergue-se inteira
na sede obscura de palavras verticais.
A água move-se até ao seu princípio puro.
O poema é um arbusto que não cessa de tremer.
António Ramos Rosa, Volante Verde
Alunos dos tempos modernos: um termina a licenciatura ao Domingo; outro faz o curso num ano. Cada vez se percebe melhor a coerência desta gente: Escola para quê? Encerrem-nas! Encerram-as. Todos os dias. O Ministro Crato que se cuide, um dia destes acorda com o estatuto de professor com horário zero.
Deprimente. Apetece-me o sossego, pois "Quietos fazemos as grandes viagens".
Vivemos numa sociedade a que Mumford chamou de "megamáquina". Neste tipo de sociedade, regida por princípios contrários a uma visão humanística, as funções do governo são delegadas em aglomerados imensos, uma máquina centralmente dirigida, onde, a longo curso, as pessoas passam a existir sem capacidade crítica, tornam-se fracas, passivas e anseiam por um dirigente que "saiba" o que fazer. Neste momento, em Portugal, o modelo burocrático ganha raízes nas escolas.
Esta máquina, tal como um automóvel, funciona praticamente por si só. A pessoa que se encontra por detrás só tem que meter as mudanças, conduzir e travar, prestando atenção a alguns pequenos detalhes: aquilo que no carro ou noutra máquina representam as várias rodas, na "megamáquina" são os muitos níveis de administração burocrática. Até um indivíduo de inteligência medíocre pode facilmente dirigir um Estado, a partir do momento em que se encontre no lugar do poder.
(Adaptado de Ter ou Ser, Erich Fromm)
É a música, este romper do escuro.
Vem de longe, certamente doutros dias,
doutros lugares. Talvez tenha sido
a semente de um choupo, o riso
de uma criança, o pulo de um pardal.
Qualquer coisa em que ninguém
sequer reparou, que deixou de ser
para se tornar melodia. Trazida
por um vento pequeno, um sopro,
ou pouco mais, para tua alegria.
E agora demora-se, este sol materno,
fica comigo o resto dos dias.
Como o lume, ao chegar o inverno.
Eugénio de Andrade, Os Sulcos da Sede
Este é o tempo
Este é o tempo
Da selva mais obscura
Até o ar azul se tornou grades
E a luz do sol se tornou impura
Esta é a noite
Densa de chacais
Pesada de amargura
Este é o tempo em que os homens renunciam.
Sophia de Mello Breyner, Mar Novo (1958)
sophia de mello breyner andresen