Que tristeza tão inútil essas mãos
que nem sempre são flores
que se dêem:
abertas são apenas abandono,
fechadas são pálpebras imensas
carregadas de sono.
Eugénio de Andrade
Diz-se, Lolita é o romance de Vladimir Nabokov. É. Deu-lhe o reconhecimento merecido. Mas intrigante e desconcertante é acompanhar as satíricas aventuras de Fogo Pálido. O texto - hipertexto - é um poema em 999 versos, seguido de uma série de comentários ao próprio poema. Na nota bibliográfica da edição que leio, Eduardo Prado Coelho refere:
Em Fogo Pálido, trata-se também de um jogo narrativo: partindo do comentário supostamente universitário de um longo poema vemos erguer-se um poderoso espaço de ficção que nos perturba, arrasta e permanentemente nos desconcerta.
Um jogo hermético que se constitui em paródia. Apesar de o Canto Dois ser o mais apreciado, transcrevo o início do Canto Um. Pelos pássaros.
Fui a sombra do ampelis despenhando-se
No céu falso da vidraça;
Fui a nódoa de um tufo de cinzas - e
Vivi sempre, fluí, no céu reflectido.
E também por dentro me dupliquei,
A minha luz, maçã pousada:
Desvelando a noite, deixarei o vidrado negro
Suspender os móveis acima do solo
E que delícia o nevão que veio cobrir
O meu pedaço de terra, erguendo-se
Levando cama e cadeira a pairar
Sobre a neve lá fora, na terra de cristal!
A neve que cai: cada floco que paira
Lento e informe, opaco e corredio,
Branco sujo na placidez do dia
E os lariços abstractos à neutral luz.
E então os dois azuis graduais
Quando a noite une o olhar ao visto,
E de manhã, diamantes de gelo
Exprimindo espanto: que esporas cruzaram
Daqui para ali, a folha nua do caminho?
Ler daqui para ali no código do inverno:
Um ponto, seta de regresso...Pé de faisão
De anilhada beleza, tetraz sublime
Que encontra o seu oriente no meu quintal?
(...)
Abro-te a porta do poema; e tu
espreitas para dentro da estrofe, onde
um espelho te espera.
Nuno Júdice
Maldivas, 2012. Revista Onfire Surf
Como vai sendo hábito, o meu Agosto finda em Chaves entre a montanha e o olhar. Desta vez, as honras da casa vão para o belíssimo Forte de São Francisco, um edifício do século XVII, exemplarmente recuperado, e que é actualmente um monumento nacional. No seu interior, a igreja de S. Francisco acolhe os visitantes num silêncio secreto e conspirador. Um lugar encantatório.
António Cândido Miguéis escreve, hoje, no Público, o artigo Em busca do Graal da felicidade. Através de pequenos quadros interpretativos, que vão desde a visão pessimista - a felicidade é um bem para os tontos e para os ingénuos -, até à ideia de que ser feliz é um dom interior, alcançável pela busca incessante de instantes aprazíveis, sobrevoamos a história da condição humana e a busca da felicidade. Uma promessa que o homem sempre porfiou. No fundo, e sempre, somos nós que, em perspectiva, fazemos o caminho.
António Miguéis fecha o debate usando uma bela citação de José Luís L. Aranguren:
A felicidade é o dom da paz interior, da conciliação de nós próprios com tudo e com todos. A felicidade como pássaro livre não estará nunca na mão, mas sempre voando. Quiçá, com sorte e quietude de nossa parte, ela pouse, por instantes, sobre a nossa cabeça.
Um breve bater de asas...
Acorda-me
um rumor de ave.
Talvez seja a tarde
a querer voar.
A levantar do chão
qualquer coisa que vive,
e é como um perdão
que não tive.
Talvez nada.
Ou só um olhar
que na tarde fechada
é ave.
Mas não pode voar.
Eugénio de Andrade, Os Amantes Sem Dinheiro ( 1947-1949), Limiar, pág 92
IIya Prigogine (1917-2003), Nobel da Química em 1977, aborda o problema do tempo através do uso de novas linguagens e, portanto, origina uma nova visão das ciências. A reconstrução dos conceitos da física leva-o a considerar a incerteza e a escolha como propriedades da existência humana, mas também do universo. Fruto da reflexão crítica de Prigogine surge a proposta de uma Nova Aliança entre o Homem e a Natureza e a de uma nova racionalidade. O Nascimento do Tempo é um pequeno texto resultante da transcrição de uma conferência apresentada por IIya Prigogine em Roma, a 12 de Fevereiro de 1987. Uma companhia oportuna para as noites claras de Agosto.
Começa assim:
O tema da minha comunicação diz respeito a uma pergunta clássica: o tempo tem um início? Sabemos que Aristóteles, no termo de uma análise do instante, concluía com a tese de que o tempo é eterno e que, na realidade, não se pode falar do seu início. Outras concepções, por exemplo as da tradição bíblica, levaram certos filósofos à ideia de que o tempo foi criado -num certo momento-, como as outras criaturas; tal foi, por exemplo, a opinião de Moisés Maimónides. Por seu lado, pensadores como Giordano Bruno ou Einstein acreditavam num tempo eterno. O que quereria agora mostrar-vos é que actualmente esta quaestio disputata pode ser retomada sob uma nova perspectiva.
O sol retorcido de verão cerra sentidos enquanto desperta o olhar em direcção a longínquos infinitos. Em Agosto, sou eu e o instante.
sophia de mello breyner andresen