Não, não é. Um cachimbo desenhado não é um cachimbo. Não é possível enchê-lo de tabaco e fumá-lo, apesar de sabermos reproduzir as sensações.
Mas vemos um cachimbo.
Através dos sentidos construímos uma imagem representativa da realidade, mas não a realidade. A ilusão dos sentidos é a nossa ilusão.
dia perfeito para desenhar o sono
ao som das árvores despertas
vibrações em signos olham
ondulações incompletas. enquanto o sol dormente
procura a distância
na fúria do silêncio.
mar suspenso vagueia pelas margens
sacode a ventosa clareira
mas intacto é o dia
espuma branca. enquanto o sol dormente
adivinha as palavras simples.
Quero que tudo seja unívoco e tangível.
Procuro que todas as coisas possuam o rumor da eficácia
e confluam num único momento de plural sinergia
para a exortação, a exaltação, o extremo.
Quero que tudo seja decisivo e incontornável como uma árvore.
Procuro que tudo siga o fluxo da imortalidade
e habite a única vontade possível,
a vontade dos homens.
Quero que tudo seja inexorável e autêntico.
Procuro que tudo se firme na infinidade,
a música e o triunfo,
a rebeldia e a luz.
Quero que tudo seja abrangente e divino.
Procuro que tudo seja simultaneamente plausível
e impossível, mais do que esperança, paixão,
mais que paixão, amor.
Deus escreve direito por linhas tortas
Sophia de Mello Breyner Andresen, O Búzio de Cós
Mantinha um fascínio indeciso
uma impressão capaz de proteger
tanto a ordem como a rebeldia
sozinha perante pedidos
agitações e escombros
desligada há muito de motivos
José Tolentino Mendonça, Baldios, Assírio & Alvim, pág. 72
O homem se via envelhecer, sem protesto contra o tempo. Ansiava, sim, que a morte chegasse. Que chegasse tão sorrateira e morna como lhe surgiram as mulheres da sua vida. Nessa espera não havia amargura. Ele se perguntava: de que valia ter vivido tão bons momentos se já não se lembrava deles, nem a memória de sua existência lhe pertencia? Em hora de balanço: nunca tivera nada de que fosse dono, nunca houve de quem fosse cativo. Só ele teve o que não tinha posse: saudade, fome, amores.
Como a morte tardasse, decidiu meter-se na estrada e caminhar ao seu encontro. Tomou a direcção do oeste. Na sombra desse ponto cardeal, todos sabemos se encontra a moradia da morte.
Iniciou a sua excursão rumo ao poente sem que de ninguém se despedisse. Os adeuses são assunto dos vivos e ele se queria já na outra vertente do tempo. Caminhava há semanas quando avistou um homem alto, um rosto de enevoados traços. Trazia pela trela um bicho estranho, entre cão e hiena. Animal mal-aparentado, com ar maleitoso.
- Esta é a morte - disse o homem apontando o cão. E acrescentou - Sou eu que a passeio pelo mundo.
- E você quem é?
- Eu sou o Tempo.
E explicou que caminhavam assim, atrelados um ao outro, desde sempre. Ultimamente, porém, a Morte andava esmorecida, quase desqualificada. Razão de que, entre os vivantes, se desfalecia agora a molhos vistos, por dá cá nenhuma palha. Morria-se mesmo sem intervenção dela, da Morte.
O velho, desiludido, explicou ao Tempo a razão da sua viagem. Ele vinha ao encontro da Morte:
- Eu queria que ela me levasse para o sem retorno.
- Vai ser difícil.
- Lhe imploro: fiz todo este caminho para ela me levar.
- Veja como ela anda: desmotivada, focinho pelo chão.
- Mas eu queria tanto terminar-me!
Impossível, insistiu o Tempo. E para comprovar, soltou o animal. O bicho se afastou, arrastado e agónico, para o fundo de uma valeta. Ali se enroscou decadente como um pano gasto. O velho se condoeu e perguntou ao bicho:
- O que posso fazer por si?
- Eu só quero beber.
Não era de água a sua sede. Queria palavras. Não dessas de uso e abuso nas palavras tenras como o capim depois da chuva. Essas de reacender crenças. O velho prometeu garimpar entre todos os seus vocabulários e encontrar lá os materiais de reacender o mais perdido fôlego. Urdia, seu secreto plano: iria ao sonho e de lá retiraria uma paixão de palavras.
Na manhã seguinte, foi de encontro à besta moribunda. O bicho estava agora mais hiena que cão. Uma baba amarela lhe escorria pelo focinho. Apenas revirou os olhos quando sentiu o homem se aproximar.
- Trouxe?
E ele lhe entregou o sonho, as palavras, mais seu inebriamento. O animal sugou tudo aquilo com voracidade. Seus olhos eram os de uma criança sorvendo estória antes do sono.
E assim se seguiram durante umas manhãs. Em cada uma, o velho se anichava e confiava seus elixires. De cada vez, o bicho se animava mais um pouco. No final, a Morte se recompôs com tais pujanças que o velho ganhou coragem e lhe apresentou o pedido, seu anseio de que o mundo se lhe fechasse. A Morte escutou o pedido de olhos fechados.
- Amanhã vou cumprir o meu mandato - anunciou ela.
Nessa noite, o velho nem dormiu, posto perante a sua última noite. Sentindo-se derradeiras, passou em revista a sua vida. Nos últimos anos, ele tinha perdido a inteira memória. Mas agora, naquela noite, lhe revieram os momentos de felicidade, toda a sua existência se lhe desfilou. e sentiu saudade, melancolia por não poder revisitar amigos, terras e mulheres. até lhe assaltou a ideia de escapar dali e reganhar aventuras no caminho da vida. Para não ser atacado por mais recordações - com o risco do arrependimento - ele foi ao rio e caminhou ao sabor da corrente. Andar no sentido da água é o modo melhor para nos lavarmos das lembranças.
No dia seguinte, o velho foi à valeta onde encontrou a Morte. Ela estava cansada, respiração ofegante. E disse:
- Já matei.
- Matou? Matou quem?
- Matei o Tempo!
E apontou o corpo desfalecido do homem alto. A hiena, então, estendeu a trela ao velho e lhe ordenou:
- Agora leva-me tu a passear!
Mia Couto
In "Na Berma de Nenhuma Estrada"
(página fb)
Estado de Excepção, o novo espectáculo do coreógrafo Rui Horta, é um trabalho multidisciplinar de dança, teatro e música. No mundo em crise, a perda dos direitos sociais passará de excepção a regra? Questionação em jeito de elogio à poética do fracasso e do fracasso olhado como sucesso.
O mundo deu uma volta sobre si próprio e nada será como dantes. Girou depressa demais e agora estamos a tentar processar o passado para podermos repensar o futuro. Andamos sobre vidros? Nunca deixámos de andar sobre vidros, só que agora estamos descalços.
É no 4.º episódio de As Bacantes que surge o tema da loucura. Ao longo desta cena de enlouquecimento de Penteu, há um jogo dialéctico persistente entre ser e parecer, ver e não ver. Eurípedes apresenta Penteu vestido de ménade e sob os efeitos do delírio dionisíaco que, disfarçado de sacerdote, o irá ridicularizar.
Penteu, tomado de estranha perturbação dos sentidos e com uma sensação patológica de força, julga poder transpor às costas o Citéron. No final do episódio, e neste estado de delírio, Diónisos conduz o rei para as montanhas, onde será morto e dilacerado pelas Bacantes que tão ardentemente deseja observar.
Um diálogo de forte ironia trágica e onde as palavras estão carregadas de duplo sentido.
O episódio tem dado motivo a diversas análises e interpretações psicanalíticas, uma vez que Penteu se disfarça de ménade/bacante/mulher com o propósito de as espiar. Espiar as Bacantes constituía profanação dos mistérios e delito que a pólis grega punia com a morte.
A força da tragédia: a mudança de Penteu de caçador em caçado.
(a partir da leitura do artigo de José Ribeiro Ferreira em "As Bacantes e o Nascimento da Tragédia")
Dioniso
Tu, que de ver o que não deves tão desejoso estás,
e o que é vedado te é solicitas, a ti falo, ó Penteu,
sai do palácio e oferece-te a meus olhos,
envergando uma veste de mulher, de Ménade, de Bacante,
tu, o espia de tua mãe e suas sectárias...
(Entra Penteu, vestido de Bacante e com o tirso na mão.)
Uma das filhas de Cadmo nas feições me pareces
Penteu
Eu estou em crer que vejo dois sóis...
E vejo Tebas, a cidade das sete portas, a dobrar...
A ti, que me conduzes, um touro eu te creio,
e na tua cabeça despontaram chifres...
Já eras dantes uma fera! Em touro te tornastes!
(...)
Artigo de Gonçalo M. Tavares
A bondade salva cada vez menos, e isso assusta. No mundo de paisagem técnica em que os elementos naturais estão escondidos - quase já não há montanha, nem terra - cada vez mais, salva quem sabe onde ligar ou desligar a electricidade; aquele que sabe mexer nos comandos da casa das máquinas.
Acabo de ler, no Jl, o artigo de João Lobo Antunes sobre a evolução da Medicina Narrativa. Uma lição. Através duma escrita limpidamente emocional, acedemos à Nova Medicina que tem como centro o olhar sobre a vulnerabilidade humana. Acompanhando a narrativa da doença compreendemos a urgência em ver para lá das aparências e das máscaras dos sintomas.
Um artigo que salienta a necessidade de elevar o diálogo clínico àquela altitude que permite o olhar horizontal, olhos nos olhos, entre o médico e o doente. Da sua experiência cúmplice, retiramos o princípio: quanto mais vulnerável mais humano. Lembrando Camus, Lobo Antunes refere que a virtude da compaixão nasce quando falamos ao Outro com a voz com que falamos a nós própios.
Para contar e ouvir.
O Museu Gulbenkian apresenta uma exposição centrada nas representações físicas e simbólicas do Mar ao longo de quatro séculos (séculos XVI-XX). Percorrendo os seis núcleos - A Idade dos Mitos; A Idade do Poder; A Idade do Trabalho; A Idade das Tormentas; A Idade Efémera; A Idade Infinita - observamos a diversidade de cores em que o mar se mostra na pintura ocidental. A não perder.
José Malhoa (1855-1933). "Praia das Maçãs". 1918. Óleo sobre painel de madeira.
O prazer pode apoiar-se sobre a ilusão, mas a felicidade repousa sobre a realidade.
Sébastien-Roch Chamfort
sophia de mello breyner andresen