Sempre. Dormiram, acordaram, esgotaram-se. Vivem na escuridão, no vácuo. Têm mãos. Respiram sombriamente sobre as mãos.
Depois param.
Então criam a festa. As forças irrompem do fundo; fazem vacilar o fino e o precário equilíbrio da terra. Para lá da lei abolida, as coisas tornam-se vísiveis, com uma intensidade, uma transparência anterior: sinais, vozes, tudo. Como se o mundo inteiro curasse uma ressaca no corpo de cada um, e essa lípida desordem deixasse o coração escorrido.
É a festa dos homens.
Herberto Helder, Passos em Volta
Este número aborda as relações entre cinema e filosofia: "filosofia do cinema" versus "cinema como filosofia".
Apetece rever (Ler e pensar) alguns dos artigos deste excelente conjunto de textos sobre filosofia da arte.
Um profundo exercício sobre a vida e a norma. Um poema inteiro, feito de cinzas e restos. Debaixo da pele, despida de ismos, o poeta deambula entre as trevas e a luz e, no gesto, constrói a esperança de um território primordial - o eu nu. Uma inquietação levada à alma. Sem disfarces: " Esta é a minha Elegia".
e só agora penso:
porque é que nunca olho quando passo defronte de mim
mesmo?
para não ver quão pouca luz tenho dentro?
ou o soluço atravessado no rosto velho e furioso,
agora que o penso e vejo mesmo sem espelho?
- cem anos ou quinhentos ou mil anos devorados pelo
fundo e amargo espelho velho:
e penso que só olhar agora ou não olhar é finalmente
o mesmo
Herberto Helder, A Morte Sem Mestre, Porto Editora, p.16
José Carlos Ary dos Santos. Nasceu em Lisboa no dia 7 de Dezembro de 1936 e faleceu no dia 20 de Janeiro de 1984.
Isto vai meus amigos isto vai
um passo atrás são sempre dois em frente
e um povo verdadeiro não se trai
não quer gente mais gente que outra gente.
Isto vai meus amigos isto vai
o que é preciso é ter sempre presente
que o presente é um tempo que se vai
e o futuro é o tempo resistente.
Depois da tempestade há a bonança
que é verde como a cor que tem a esperança
quando a água de Abril sobre nós cai.
O que é preciso é termos confiança
se fizermos de Maio a nossa lança
isto vai meus amigos isto vai.
Um poema de Mário Cesariny
Aclamações
dentro do edifício inexpugnável
aclamações
por já termos chapéu para a solidão
aclamações
por sabermos estar vivos na geleira
aclamações
por ardermos mansinho junto ao mar
aclamações
porque cessou enfim o ruído da noite a secreta alegria por escadas
de caracol
aclamações
porque uma coisa é certa: ninguém nos ouve
aclamações
porque outra é indubitável: não se ouve ninguém
sophia de mello breyner andresen