Ling pagou a despesa do velho pintor: como Wang-Fô não tinha dinheiro nem hospedaria onde ficar, ofereceu-lhe humildemente abrigo.
Saíram juntos; Ling segurava uma lanterna; o clarão projectava nas poças inesperados lampejos. Nessa noite, Ling soube com surpresa que os muros da sua casa não eram vermelhos, como julgara, mas sim da cor de uma laranja prestes a apodrecer. No pátio, Wang-Fô apontou a forma delicada de um arbusto, em que ninguém reparara até então, e comparou-o a uma rapariga deixando secar os cabelos. No corredor, acompanhou com enlevo a hesitante caminhada de uma formiga ao longo das fendas da parede, e o horror de Ling por esses animalejos desvaneceu-se. Então, ao compreender que Wang-Fô acabara de lhe ofertar uma alma e uma percepção novas, Ling deitou respeitosamente o velho no quarto onde seu pai e sua mãe tinham morrido.
sophia de mello breyner andresen