Ano após ano, o tema da consciência em Sartre obriga-me a reler uma das suas grandes obras o Ser e o Nada. A abordagem sartreana desta instância, que nos leva ao conhecimento, é fascinante. O autor liga o tema, ainda que por contraposição, à arte. Além disso, e por extensão, tenho particular interesse em explorar os temas da solidão e da infelicidade que, sabemos, estão subjacentes ao próprio acto da consciência. Na tentativa de superar o negativismo e o solipsismo provenientes das relações do homem com o mundo e consigo próprio, Sartre analisa as relações do Eu com o Outro, bem como as relações do Eu com o Mundo, concluindo que o Eu não está só. Deste ponto de vista, Sartre esclarece que antes da relação cognitiva entre o Eu e o Outro, há a relação que ambos estabelecem mutuamente através do olhar, lugar primeiro das relações intersubjectivas. Como salienta Sergio Moravia, a descoberta mais dramática tem lugar quando o Outro levanta os olhos e me observa, um leve piscar de olhos, reduzindo a neutralidade entre o Eu e o Outro. Assim, neste gesto, se define o Eu enquanto ser-para-outro: eu sou aquele eu que um Outro conhece. Pelo olhar, formam-se os espelhos; pelo olhar, presentificamos o Mundo.
A sua impressão sobre o tema é muito interessante, sobretudo se atendermos à importância - muito actual - da construção que fazemos sobre o outro em nós quando dele se nos faz notícia.
Mas há um detalhe, penso, a considerar... Compreendo que a noção - do ponto de vista estritamente filosófico - de "olhar" é, acima de tudo e em relação ao seu texto, uma forma de compreensão primeira. Mas o imediatismo dessa forma de compreensão leva-me a pensar que, por exemplo, as pessoas invisuais (provavelmente, incapazes de fazer acontecer nelas próprias uma primeira impressão baseada no imediatismo, deste ponto de vista) estarão, assim, mais ou menos impossibilitadas de, como salienta Moravia, "levantar os olhos".
Não terá, em casos como este, de ser essa "visão primeira do outro" substituída pela audição ou pelo tacto ou por uma qualquer manifestação da alteridade que não o "aparecimento" visual? Não levantará esta questão, por exemplo, limites à compreensão da abordagem sartreana do conhecimento? Não estará a intersubjectividade do sujeito invisual limitada (ou sujeita a um faseamento) ou mesmo temporalmente distante de um pré-reconhecimento do outro?
De Anónimo a 19 de Julho de 2012 às 02:59
Comentário apagado.
Obrigado. Como deve calcular, o comentário que fiz não é mais que a expressão de uma preocupação que me tem acompanhado ao longo da vida e que se traduz, no essencial, numa certa interpretação do mundo feito pelos "autores fundamentais" que apenas lê o corpo perfeito, íntegro, sem imperfeições, totalmente capaz de "ver", de ligar e religar, de fundamentar a comunicação e fazer a leitura do mundo por, digamos, contacto directo, quase táctil. Este esquecimento de um corpo impedido disto ou daquilo é, aliás, facto compreensível do ponto de vista histórico...
Vou reler Bergson, sobretudo. Ajudará. E vou continuar a picá-la e a incomodá-la, para continuar a motivá-la a fazer o que faz com a excelência que sabe.
Uma última ideia: não podia concordar mais consigo quando ao incremento filosófico que é a solidão. A solidão é tudo, aqui e agora. Devemos procurá-la como se o mundo terminasse hoje, mesmo que à nossa mesa se sentem convidados e não convidados.
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