As cidades mencionadas por Marco Polo a Kublai Khan têm todas nomes de mulher. Por culpa dos espelhos, parei em Valdrada, cidade edificada nas margens de um largo lago. Uma viagem sem acessórios, porque, aqui, e em todas as cidades descritas por Italo Calvino, o viajante necessita apenas de si mesmo. Cidade sem lugar nem tempo, mas onde a universalidade da linguagem (poética) transporta a humanidade toda.
Requisito único: na imaginação, a liberdade...
Um livro mágico. Não me canso de o ler.
III
As cidades e os olhos. 1.
Os antigos construíram Valdrada nas margens de um lago com casas todas varandas umas por cima das outras e ruas altas que fazem assomar à água os parapeitos em balustre. Assim o viajante ao chegar vê duas cidades: uma direita sobre o lago e uma reflectida de pernas para o ar. Não existe nem acontece coisa numa Valdrada que a outra Valdrada não repita, porque a cidade foi construída de modo a que todos os seus pontos fossem reflectidos pelo seu espelho, e a Valdrada na água contém não só todas as estrias e os remates das fachadas que se elevam por cima do lago mas também o interior das casas com os tectos e pavimentos, a perspectiva dos corredores, os espelhos dos armários.
Os habitantes de Valdrada sabem que todos os seus actos são ao mesmo tempo esse acto e a sua imagem especular, a que pertence a especial dignidade das imagens, e esta sua consciência proíbe-os de se abandonarem por um só instante ao acaso e ao esquecimento.
(...)
(A capa desta edição da Teorema - reprodução do quadro de Bruegel, A Torre de Babel)
sophia de mello breyner andresen