Acabei de ver "Hannah Arendt". Tendo como pretexto o julgamento de Adolf Eichmann, o filme expõe a radicalidade do acto de pensar e explica-nos, de forma clara, que a "banalidade do mal" resulta de um conjunto de actos rotineiros, acessíveis a qualquer ser, tão rotineiros que se torna impossível "cumprir as exigências da justiça". Quando os seres humanos se recusam a ser pessoas e se recusam a pensar, tornam-se incapazes de realizar juízos morais e as categorias éticas, que balizam a acção e o pensamento, desaparecem. De súbito, estamos perante " As origens do Totalitarismo", que Hannah avalia: "compreender não é perdoar". Deste modo, e quando Hannah afirma que "a manifestação do vento do pensamento não é pensar", mostra-nos a especificidade da problematização filosófica: a radicalidade, a universalidade, a autonomia e a historiciade. Uma lição, portanto.
O filme coloca ainda um vasto conjunto de questões, que atravessam a obra da filósofa, como as noções de aparência, realidade, culpa, perdão, justiça...permitindo-nos fazer uma comparação com o momento vivido pela sociedade portuguesa: o "mal" assola-nos, restará alguém para culpar, entre O Passado e o Futuro?
Em O Amigo, Agamben apresenta-nos o heteros autos como alteridade imanente na mesmidade e define a amizade nos limites da con-partilha. Não há na amizade nenhuma relação entre sujeitos: é o próprio ser que é dividido, que não é idêntico a si, e o eu e o amigo são as duas faces - ou antes os dois pólos - desta con-partilha. Tendo como pré-texto um trecho da Ética Nicomaqueia de Aristóteles e depois de termos sido convidados a fazer a leitura em conjunto, Agamben discursa sobre a relação humana da amizade e sobre as bases ontológicas e políticas em que se auto-sustenta.
A amizade é a instância desse con-sentimento da existência do amigo no sentimento da sua própria existência.
Porque a democracia resta por vir, tal é a sua essência na medida em que ela resta: não apenas ela restará indefinidamente perfectível, logo sempre insuficiente e futura mas, pertencendo ao tempo da promessa, restará sempre, em cada um dos seus tempos futuros, por vir [à venir]: mesmo quando há democracia, esta não existe nunca, não está nunca presente, permanecendo o tema de um conceito não apresentável. Será possível abrir ao "vem" de uma certa democracia que não seja mais um insulto à amizade que tentámos pensar para além do esquema homo-fraternal e falologocêntrico? Quando estaremos nós prontos para uma experiência da liberdade e da igualdade que faça a prova respeitosa desta amizade, e que seja finalmente justa, justa para além do direito, quer dizer, à medida da sua desmesura? Ó meus amigos democratas…
Derrida, Políticas da Amizade
O Homem vive simultaneamente como sujeito livre e objecto determinado...
Bem a propósito, aconselho a leitura do seguinte trecho de Karl Marx presente no artigo de Terry Eagleton "O Imaginário Kantiano" na Revista Crítica (Revista do Pensamento Contemporâneo), na edição de Novembro de 1991, pág. 70.
Nos nossos dias, tudo parece prenhe do seu contrário. Sendo nós uma maquinaria dotada do maravilhoso poder de reduzir e fazer frutificar o trabalho humano, contemplamos a fome e a morte por excesso de trabalho. As fontes de riqueza da moda são convertidas, por uma estranha magia, em fontes de penúria. As vitórias da arte parecem ser compradas com a perda do carácter. Na mesma medida em que a humanidade domina a natureza, parece ter sido o homem escravizado por outros homens e pela própria infâmia. Mesmo a luz pura da ciência parece incapaz de brilhar a não ser sobre o fundo escuro da ignorância. Toda a nossa invenção e todo o nosso progresso parecem ter como consequência dotar as forças materiais de vida intelectual e reduzir a vida humana a uma força material. Este antagonismo entre a indústria e a ciência modernas, por um lado, e miséria e dissolução, por outro; este antagonismo entre as forças produtivas e as relações sociais, na nossa época, é um facto pálpavel, esmagador, que não pode ser desmentido.
Não, não é. Um cachimbo desenhado não é um cachimbo. Não é possível enchê-lo de tabaco e fumá-lo, apesar de sabermos reproduzir as sensações.
Mas vemos um cachimbo.
Através dos sentidos construímos uma imagem representativa da realidade, mas não a realidade. A ilusão dos sentidos é a nossa ilusão.
(...) Neste preciso momento, há biliões de organismos neste planeta a jogar às escondidas. Mas para eles não se trata apenas de um jogo. É uma questão de vida ou de morte. Não se enganarem, não cometerem erros, tem sido de uma importância primordial para todos os seres vivos deste planeta desde há três biliões de anos; por isso, estes organismos desenvolveram milhares de formas diferentes de descobrir como é o mundo em que vivem, distinguindo os amigos dos inimigos, os alimentos dos companheiros e ignorando, em grande medida, o resto. É para eles importante não estarem mal informados acerca destas matérias – mas, regra geral, não se dão conta disto. Eles são os beneficiários de um equipamento delicadamente concebido para captar bem o que interessa, mas quando o seu equipamento funciona mal e capta as coisas mal, não têm, regra geral, recursos para se darem conta disto, quanto mais para o lamentarem. Eles limitam-se a prosseguir, inconscientemente. A diferença entre a aparência e a realidade das coisas é um hiato tão fatal para eles como o pode ser para nós, mas eles não se apercebem, em grande medida, disso. O reconhecimento da diferença entre a aparência e a realidade é uma descoberta humana. Algumas das outras espécies (alguns primatas, alguns cetáceos, talvez até algumas aves) reconhecem, aparentemente, o fenómeno da “crença falsa” – o engano. Mostram alguma sensibilidade aos erros dos outros e talvez até alguma sensibilidade aos seus próprios erros enquanto erros, mas não têm a capacidade de reflexão necessária para refletir nesta possibilidade, razão pela qual não podem usar esta sensibilidade para conceber deliberadamente correções ou aperfeiçoamentos nos seus próprios instrumentos de busca e dissimulação. Esse tipo de superação do hiato entre a aparência e a realidade é um ardil que só nós, os seres humanos, dominámos.
Somos a espécie que descobriu a dúvida. (…) As outras criaturas são muitas vezes visivelmente inquietadas pelas suas próprias incertezas acerca destas mesmas questões, mas, porque não podem, na verdade, colocar-se a si mesmas estas perguntas, não podem articular, para si próprias, os seus dilemas, nem tomar medidas para aperfeiçoar o seu controlo da verdade. Estão encurraladas num mundo de aparências, fazendo com elas o melhor que podem, raramente se preocupando (se é que alguma vez o fazem) com a questão de saber se a aparência corresponde à realidade. (...)
Daniel C. Dennett, Fé na Verdade – in Disputatio, n.º 3, novembro de 1997
(retirado do Manual Escolar 2.0)
Consequências decorrentes das leituras do dia:
1. C. Falzon
Pelo menos duas funções caracterizam o pensamento crítico. A primeira é tomar o peso às posições, crenças e argumentos para perguntar se as razões que as suportam são adequadas ou relevantes e se os argumentos apresentados são conformes a princípios de raciocínio consistente. A segunda função é a de questionar crenças e posições que se tornaram fechadas ou dogmáticas, para denunciar os limites de tal pensamento, as suas falhas ou inaptidões para lidar com certos factos, considerações ou argumentos, e abrir o caminho para um modo diferente de pensar.
Gosto de ler José Bragança de Miranda. O artigo que me ocupa, e que folheio, abre a polémica citando Maurice Maeterlinck (1980):
Talvez o ser humano venha a ser substituído por uma sombra, um reflexo projectado num écran, por formas simbólicas ou algum ser que terá a aparência da vida mas não terá vida.
José Bragança de Miranda trabalha a ideia, muito divulgada, do fim da história do mundo, também conhecida por pós-modernismo. Diz-nos, a modernidade sempre andou assombrada com o seu fim, daí a a busca incessante do novo. Já tudo terminou, a sociedade, a história, as ideologias e a família. Agora, chega ao fim o corpo. Destaca a radicalidade desta morte anunciada, uma vez que ela traz consigo alterações infindáveis, e escreve: O corpo é das categorias mais persistentes do pensamento ocidental. Depois da "morte de Deus" (Nietzsche), da "fuga dos Deuses" (Hölderlin), (...) era realmente estranho que o corpo permanecesse incólume.
A análise deste último capítulo da história tem como fim encontrar o que falta ao humano. Através duma abordagem aberta, que prioriza o essencial, o autor articula persistentemente os conceitos de corpo, carne - o que emerge com a crise do corpo é a carne - e intersubjectividade. Por último, apresenta a técnica como fio que lança o Homem no mundo virtual, conceito que Bragança de Miranda define, num outro contexto, como sendo o lugar de fragmentação de toda a totalidade, queda heteróclita de tudo, sem princípio nem fim. Um visor, um banquete de sombras reais do mundo.
Marx tem razão : Tudo o que é sólido se dissolve no ar. O corpo também?
(...) Direis: o magistrado fará, com as forças de que dispõe, o que julgar ser da sua alçada. Dizeis bem, responderei eu. Mas, aqui, investiga-se o modo como bem agir e não o êxito das coisas duvidosas.
Mas, vindo mais ao pormenor, digo: em primeiro lugar, o magistrado não deve tolerar nenhum dogma oposto e contrário à sociedade humana ou aos bons costumes necessários à conservação da sociedade civil. Mas tais exemplos são raros em qualquer igreja. Com efeito, os dogmas que claramente arruínam os fundamentos da sociedade são condenados pelo juízo do género humano; nenhuma seita levaria a loucura ao ponto de julgar que se devem ensinar dogmas em virtude dos quais os próprios bens, a paz e a reputação não estariam em segurança.
Em segundo lugar, um mal certamente mais escondido e mais perigoso para o Estado é constituído por aqueles que se arrogam, para eles e para a sua seita, um privilégio particular e contrário ao direito civil, que cobrem e disfarçam com discursos especiosos. Em lado algum, praticamente, encontrareis pessoas a ensinar crua e abertamente que não é necessária a fidelidade à palavra dada; que o príncipe pode ser afastado do trono por qualquer seita e que o governo de todas as coisas só a eles pertence. (...) Estas pessoas e outras semelhantes, que atribuem aos fiéis, aos religiosos, aos ortodoxos, isto é, a elas próprias, nas coisas civis, algum privilégio e algum poder de que o resto dos mortais não dispõe; ou que reivindicam para si, sob pretexto de religião, certos poderes sobre os homens estranhos à sua comunidade eclesiástica, ou que dela de qualquer maneira se separaram, estas pessoas não podem ter o direito de ser toleradas pelo magistrado; nem também os que não querem ensinar que é preciso tolerar os que entram em dissidência relativamente à sua própria religião. Que outra coisa ensinam estas pessoas e todos os da sua espécie senão que, na melhor ocasião, tentarão usurpar os direitos do Estado, os bens e a liberdade dos cidadãos?
Locke, Carta Sobre a Tolerância, trad. João da Silva Gama, Lisboa, Edições 70, 1996, pp. 116-117
António Cândido Miguéis escreve, hoje, no Público, o artigo Em busca do Graal da felicidade. Através de pequenos quadros interpretativos, que vão desde a visão pessimista - a felicidade é um bem para os tontos e para os ingénuos -, até à ideia de que ser feliz é um dom interior, alcançável pela busca incessante de instantes aprazíveis, sobrevoamos a história da condição humana e a busca da felicidade. Uma promessa que o homem sempre porfiou. No fundo, e sempre, somos nós que, em perspectiva, fazemos o caminho.
António Miguéis fecha o debate usando uma bela citação de José Luís L. Aranguren:
A felicidade é o dom da paz interior, da conciliação de nós próprios com tudo e com todos. A felicidade como pássaro livre não estará nunca na mão, mas sempre voando. Quiçá, com sorte e quietude de nossa parte, ela pouse, por instantes, sobre a nossa cabeça.
Um breve bater de asas...
Ano após ano, o tema da consciência em Sartre obriga-me a reler uma das suas grandes obras o Ser e o Nada. A abordagem sartreana desta instância, que nos leva ao conhecimento, é fascinante. O autor liga o tema, ainda que por contraposição, à arte. Além disso, e por extensão, tenho particular interesse em explorar os temas da solidão e da infelicidade que, sabemos, estão subjacentes ao próprio acto da consciência. Na tentativa de superar o negativismo e o solipsismo provenientes das relações do homem com o mundo e consigo próprio, Sartre analisa as relações do Eu com o Outro, bem como as relações do Eu com o Mundo, concluindo que o Eu não está só. Deste ponto de vista, Sartre esclarece que antes da relação cognitiva entre o Eu e o Outro, há a relação que ambos estabelecem mutuamente através do olhar, lugar primeiro das relações intersubjectivas. Como salienta Sergio Moravia, a descoberta mais dramática tem lugar quando o Outro levanta os olhos e me observa, um leve piscar de olhos, reduzindo a neutralidade entre o Eu e o Outro. Assim, neste gesto, se define o Eu enquanto ser-para-outro: eu sou aquele eu que um Outro conhece. Pelo olhar, formam-se os espelhos; pelo olhar, presentificamos o Mundo.
Um livro espantoso, que conheci através de um aluno.
A obra dá-nos a conhecer o significado de um número e o seu contributo para a formação da história das mentalidades. Como refere Seife no capítulo 0 " (...) o zero moldou a visão que a humanidade tem do universo - e de Deus". Não são páginas sobre números, portanto.
O problema do Zero consiste em que não precisamos de o utilizar nas operações da vida quotidiana. Ninguém sai para comprar zero peixes. De certo modo, é o mais civilizado de todos os cardinais e o seu uso só nos é imposto por modos de pensar elaborados.
Charles Seife, Zero - A Biografia De Uma Ideia Perigosa, Gradiva.
Obrigada, Jorge Moniz.
Pode saber mais aqui
É incomensurável a infelicidade profunda que se esconde por detrás da aparência confortante do homem moderno. Hoje o mundo é povoado por seres impotentes, paralisados na necessidade constante de iniciativa e de empreendedorismo. Quando estalar o verniz, o perigo soltar-se-á: " O desespero do autómato humano é terreno fértil para os objectivos políticos do fascismo."
Todas as coisas humanas têm dois aspectos... para dizer a verdade todo este mundo não é senão uma sombra e uma aparência; mas esta grande e interminável comédia não pode representar-se de um outro modo. Tudo na vida é tão obscuro, tão diverso, tão oposto, que não podemos nos assegurar de nenhuma verdade.
Erasmo, Elogio da Loucura
Nos nossos dias, tudo parece estar prenhe do seu contrário. Sendo nós uma maquinaria dotada do maravilhoso poder de reduzir e fazer frutificar o trabalho humano, contemplamos a fome e a morte por excesso de trabalho. As fontes de riqueza da moda são convertidas, por uma estranha magia, em fontes de penúria. As vitórias da arte parecem ser compradas com a perda do carácter. Na mesma medida em que a humanidade domina a natureza, parece ter sido o homem escravizado por outros homens e pela sua própria infâmia.
(...) este antagonismo entre as forças produtivas e as relações sociais, na nossa época, é um facto palpável, esmagador, que não pode ser desmentido.
Karl Marx, The People`s Paper
19 de Abril de 1856
sophia de mello breyner andresen