para te manteres vivo - todas as manhãs
arrumas a casa sacodes tapetes limpas o pó e
o mesmo fazes com a alma - puxas-lhe brilho
regas o coração e o grande feto verde-granulado
deixas o verão deslizar de mansinho
para o cobre luminoso do outono e
às primeiras chuvadas recomeças a escrever
como se em ti fertilizasses uma terra generosa
cansada de pousio - uma terra
necessitada de águas de sons de afectos para
intensificar o esplendor do teu firmamento
passa um bando de andorinhões rente à janela
sobrevoam o rosto que surge do mar - crepúsculo
donde se soltam as abelhas incompreensíveis
da memória
luzeiros marinhos sobre a pele - peixes
que se enforcam com a corda de noctilucos
estendida nesta mudança de estação
Al Berto, Horto de Incêndio, Assírio & Alvim, p. 52
Todos os pássaros sossegaram.
As crianças desceram das árvores, guardaram os jogos,
recolheram a casa. Levanto a cabeça e deixo a voz deambular
por dentro deste silêncio de água e de estrelas.
A noite está próxima.
Deixo o corpo escorregar na poeira luminosa.
Acendo um cigarro, ponho-me a falar com o meu fantasma.
Longe daqui, a cidade enfeitou-se com os seus crimes de néon,
com suas traições... ouço hélices de barcos,
motores... quando um rosto esvoaça ao alcance da mão.
al berto
no marítimo lodo da fala fazem ninho
pássaros de sal com suas asas afiadas
sulcam
o susto de ficar sozinho
e a cabeça sibilante de uma libélula esvoaça
na visão dourada do sonho o tempo circular dos dedos
no corpo as mãos em movimento de esquecidos barcos
sobre vagas de poalha estelar onde naufragam
as palavras sem nexo e repetidos gestos
devasso percursos de entorpecidas praias
algures no estilhaço rubro dos mapas abandono
o que amei já não tem importância e regresso
ao isolamento onde a treva se enche de segredos e
a voz do mar acorda o dormente coração
do adolescente marinheiro que partiu para morrer
o sonho agarra-se ao sarro das velas e
a alba fustiga os vidros da janela onde
encostei a cara para chorar como as glicínias
regresso ao cais
com este lamento ao leme os pulsos cansados
pelo brilho cortante do sal aceso no vento que transporta
e agita as silentes sombras de feras longínquas
e perfura o sono e a gestação fantástica dos lírios
magoadas águas
reflectindo cicatrizes lancinantes de néons
o cais por fim o cais onde desembarcamos e
de nossos corpos não nos lembraremos mais
Al Berto
Desconcertante é que tão grande tristeza caiba dentro de tão pequeno peito.
Às vezes morre-se tanto, e tão cedo.
Al Berto
e ao anoitecer adquires nome de ilha ou de vulcão
deixas viver sobre a pele uma criança de lume
e na fria lava da noite ensinas ao corpo
a paciência o amor o abandono das palavras
o silêncio
e a difícil arte da melancolia
Al Berto
(...) Amanhã, ou enquanto dormes
- agora mesmo -, vou pensar em ti.
Intensamente: até que as horas me doam sobre a pele,
e o movimento dos dias passe como aves
que perdem o sentido do voo - até que tudo
o que me rodeia tome a forma do teu corpo.
E em mim circules - quando estendo a mão
por dentro da noite e te acordo,
no fogo dos meus olhos.
Al berto
sophia de mello breyner andresen