Em O Amigo, Agamben apresenta-nos o heteros autos como alteridade imanente na mesmidade e define a amizade nos limites da con-partilha. Não há na amizade nenhuma relação entre sujeitos: é o próprio ser que é dividido, que não é idêntico a si, e o eu e o amigo são as duas faces - ou antes os dois pólos - desta con-partilha. Tendo como pré-texto um trecho da Ética Nicomaqueia de Aristóteles e depois de termos sido convidados a fazer a leitura em conjunto, Agamben discursa sobre a relação humana da amizade e sobre as bases ontológicas e políticas em que se auto-sustenta.
A amizade é a instância desse con-sentimento da existência do amigo no sentimento da sua própria existência.
Um homem que tem como "loucura" a "leveza", oferece, em palavras, a âncora da amizade. Há mais de vinte anos, encontramo-nos na borda do cais, pedra que nos fixa ao topo, e, em cada partida, renovamos o tempo da esperança.
Falo do Nuno, e vejo-o, através do seu belo "Auto-retrato".
Sou,
mas a minha paixão é aquilo
que não sou
se pelo ser rastejo sinuoso no pó
dorso horizontal de réptil
pelo não ser o meu corpo de águia
anseia pela carícia das estrelas
e as neves sempre renovadas
de inauditos himalaias
se o peso é o meu destino
a leveza é a minha loucura
a minha doença são os cais
se fico gostaria de não ficar
ir nos comboios que partem e nos
outros que faço partir
que itinerário o do meu sonho?
viagem a uma geografia interior e arenosa
ao espaço exacto entre o cais e a partida
que os dedos azuis do sonho esboçam e anulam
quem sou eu?
que labirinto percorre o meu desejo?
hei-de perguntar ao vento.
Nuno Pinto
Como nos ensina Platão, a amizade é o cultivo do belo, da sabedoria e até do divino. É um dinamismo que nos aproxima e fixa em algumas pessoas. Em outras não. É um itinerário iniciático e dialéctico, conduzido pela mão de Diotima.
Os encontros com a minha amiga Olga Rocha desafiam-me e inquietam-me, mesmo que tenham a duração de um instante.
Esse lado breve mas imutável das relações representa, para mim, um tempo certo e uma escala de valoração, provando que nem tudo se dissolve no ar.
Foi então que apareceu a raposa.
- Olá, bom dia! - disse a raposa
- Olá bom dia! - respondeu delicadamente o principezinho que se voltou mas não viu ninguém.
- Estou aqui - disse a voz - debaixo da macieira.
- Quem és tu? - perguntou o principezinho. - És bem bonita...
- Sou uma raposa - disse a raposa.
- Anda brincar comigo - pediu - lhe o principezinho. - Estou tão triste...
- Não posso ir brincar contigo - disse a raposa. - Não estou presa...
- Ah! Então desculpa! - Disse o principezinho.
Mas pôs-se a pensar, a pensar, e acabou por perguntar:
- O que é que "estar preso" quer dizer?
- Vê-se logo que não és de cá - disse a raposa. - De que é que tu andas à procura?
- Ando à procura dos homens - disse o principezinho. - O que é que "estar preso" quer dizer?
- Os homens têm espingardas e passam o tempo a caçar - disse a raposa. - É uma grande maçada! E também fazem criação de galinhas! Aliás, na minha opinião, é a única coisa interessante que eles têm. Andas à procura de galinhas?
- Não - disse o principezinho. - Ando à procura de amigos. O que é que "estar preso" quer dizer?
- É uma coisa que toda a gente se esqueceu - disse a raposa. - Quer dizer que se está ligado a alguém, que se criaram laços com alguém.
- Laços?
- Sim, laços - disse a raposa. - Ora vê: por enquanto, para mim, tu não és senão um rapazinho perfeitamente igual a outros cem mil rapazinhos. E eu não preciso de ti. E tu também não precisas de mim. Por enquanto, para ti, eu não sou senão uma raposa igual a outras cem mil raposas. Mas, se tu me prenderes a ti, passamos a precisar um do outro. Passas a ser único no mundo para mim. E, para ti, também passo a ser única no mundo...
- Parece que estou a começar a perceber - disse o principezinho. - Sabes, há uma certa flor...tenho impressão que estou preso a ela...
(...).
Antoine de Saint - Exupéry, O Principezinho
Há laços que perduram.
sophia de mello breyner andresen