O dia é alto quando na mesa nada espera que não seja poesia.
António Ramos Rosa
Sob o olhar atento de António Ramos Rosa, um poema de Pedro Tamen sobre a instantaneidade da palavra e a imediatidade do instante.
E agora: a tua pele.
Revejo: é manso o mar.
E sei que o vento corre e que por ele
se colam no teu corpo lembranças de luar.
Descanso: os teus cabelos.
Entrego: já é dia.
Os caules são serenos, e ao vê-los
no côncavo da mão o sol nascia.
António Ramos Rosa, Incisões Oblíquas, Caminho, pág. 89.
António Ramos Rosa, poeta entre poetas, faz 88 anos.
O movimento vertical da construção vem de muito longe, de um fundo sem fundo que a visão não capta mas que é a condição primeira da visibilidade. A noite desse fundo é a força que unifica e propaga preenchendo o vazio da pupila e abrindo-a ao mundo. Essa força é a força da imaginação e a possibilidade de ser o que ainda não se é.
António Ramos Rosa, O Aprendiz Secreto (2001)
Fotografia: Gisela Rosa, 2010
Não há segredo mais supremo nem mais simples do que esta relação vital entre o corpo e o espaço, entre o alento e a paisagem, entre o olhar e o ser.
António Ramos Rosa, O Aprendiz Secreto
A leitora abre o espaço num sopro subtil.
Lê na violência e no espanto da brancura.
Principia apaixonada, de surpresa em surpresa.
Ilumina e inunda e dissemina de arco em arco.
Ela fala com as pedras do livro, com as sílabas da sombra.
Ela adere à matéria porosa, à madeira do vento.
Desce pelos bosques como uma menina descalça.
Aproxima-se das praias onde o corpo se eleva
em chama de água. Na imaculada superfície
ou na espessura latejante, despe-se das formas,
branca no ar. É um torvelinho harmonioso,
um pássaro suspenso. A terra ergue-se inteira
na sede obscura de palavras verticais.
A água move-se até ao seu princípio puro.
O poema é um arbusto que não cessa de tremer.
António Ramos Rosa, Volante Verde
Quem escreve quer morrer, quer renascer
num ébrio barco de calma confiança.
Quem escreve quer dormir em ombros matinais
e na boca das coisas ser lágrima animal
ou o sorriso da árvore. Quem escreve
quer ser terra sobre terra, solidão
adorada, resplandecente, odor de morte
e o rumor do sol, a sede da serpente,
o sopro sobre o muro, as pedras sem caminho,
o negro meio-dia sobre os olhos.
António Ramos Rosa, Acordes
Nada é inacessível no silêncio ou no poema.
É aqui a abóbada transparente, o vento principia.
No centro do dia há uma fonte de água clara.
Se digo árvore a árvore em mim respira.
Vivo na delícia nua da inocência aberta.
António Ramos Rosa, Volante Verde
Por enquanto o frenesim domina […] Mas a escrita é a última possibilidade de fuga, a respiração ainda. Porque nós estamos cerrados, ameaçados de esmagamento, de emparedamento e de asfixia. […] Temos de minar a língua para que ela se abra e nos abra. […] Deixemos falar os senhores, os que sabem, os que querem dominar. Nós não sabemos mas, na nossa ignorância, sentimos o apelo urgente de um começo, que é o núcleo do silêncio e da palavra. […] Sim, podemos libertar-nos se soubermos a palavra viva que dá voz ao habitante secreto e primordial do nosso corpo, alguém que é ninguém, ninguém que é alguém, sempre ausente mas vivo nas nossas células, na submersa nascente que inaugura o mundo.
António Ramos Rosa, in Prosas seguidas de Diálogos
Não sei se respondo ou se pergunto.
Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.
Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra.
Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho.
De súbito ergo-me como uma torre de sombra fulgurante.
A minha ebriedade é a da sede e a da chama.
Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio.
O que eu amo não sei. Amo em total abandono.
Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente.
Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.
Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.
Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença.
Não sou a destruição cega nem a esperança impossível.
Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.
António Ramos Rosa, Facilidade do Ar
Bela frase de António Ramos Rosa onde o lugar, o tempo e o não-tempo intertextualizam o(s) sentido(s).
Aqui agora é nunca.
sophia de mello breyner andresen