A criação artística e a obra de arte
No dia 10 de Junho de 1974, um grupo de quarenta e oito artistas plásticos pintou, em Lisboa, um mural que viria a desaparecer, num incêndio, em 1981. Entre os pintores, muitas caras conhecidas : Júlio Pomar, João Abel Manta, Nikias Skapinakis, Menez, Vespeira, Costa Pinheiro, etc., etc.
https://caminhosdamemoria.wordpress.com/2009/06/29/1974-uma-pintura-colectiva/
Richard Serra (San Francisco, 1939) está presente no Museu Rainha Sofia.
Através do título acedemos à compreensão da obra. Serra interliga dois acontecimentos históricos: o massacre de civis em Guernica (1937) e o ataque da Força Aérea norte-americana na cidade líbia de Bengasi (1986).
( foto mceuprudencio)
Provérbio flamengo:
" O mundo é como um carro de feno, e cada um colhe o que pode."
Diz-se que este ditado serviu de mote ao quadro "O Carro de Feno", de Bosch, que se encontra no Museu do Prado.
Bosch, O Carro de Feno
( Museu do Prado, Madrid)
Pela arte manifesta-se, também, a indignação com as desigualdades sociais e políticas. O quadro Guernica, pintado por Pablo Picasso, que retrata a Guerra Civil Espanhola, exemplifica significativamente a questão colocada.
Pablo Picasso foi perseguido e preso pelas tropas do general Franco. Ao prendê-lo, perguntaram a Picasso: Quem pintou guernica? e ele respondeu: Foram vocês!
E o mundo continua a pintar; desenfreadamente.
O homem parte sempre da sua circunstancialidade para configurar a realidade. Mergulhando nela, constrói significações que traduzem uma visão do mundo e da vida. A arte é espelho desta condição, mas acrescenta-lhe realidade, o que é fascinante. Pela arte, nasce uma nova consciência e a realidade ganha um sentido profundamente humano. Pela arte, conciliamo-nos com o mundo.
Sem a memória, o coração ficaria vazio.
Em qualquer paisagem, em qualquer recinto onde abarcam os olhos, o número de coisas visíveis é praticamente infinito, mas nós só podemos ver, em cada instante, um número muito reduzido delas.
Todo o ver é, pois, olhar; todo o ouvir, um escutar e, em geral, toda a nossa capacidade de conhecer é um foco luminoso, uma lanterna que alguém, posto atrás dela, dirige a um ou outro quadrante do Universo, repondo sobre a imensa e passiva face do cosmos aqui a luz, ali a sombra.
Adaptado de Ortega y Gasset, Coração e cabeça.
A Persistência da Memória, Salvador Dali (1931)
Diz Tolstoi que a arte não é nem a manifestação da ideia de belo nem um jogo que serve para descarregar a energia acumulada. A arte, para este grande escritor russo, é uma forma de as pessoas se relacionarem, indispensável à vida e ao progresso da humanidade.
Preenchendo o descanso activo, caminho pela arte. Paro em Magritte. Isto não é um cachimbo? Não, não é, diz o pintor belga surrealista. Claro, um cachimbo de verdade é um objecto que serve para fumar. Com esta imagem a acção é impossível. A questão não é simples, parte da relação entre a representação e o que ela representa. De repente, vejo que o problema é antigo. Moisés proibiu o seu povo de adorar ídolos, porque nenhuma representação de Deus é Deus.
Platão, escritor de fina ironia, apresenta, ao longo da sua vasta obra, o pensador como um artista. Não admira. Foi invulgarmente dotado para a representação dramática e para a comédia. Sem surpresa, portanto, o Diálogo, como forma de investigação racional; e de exposição das Ideias. Entretanto, pelo caminho, na República, conflitua com os poetas.
Júlio Resende (1917-2011). Um homem universal. Pintor.
Fica a obra.
Ribeira Negra (1984, Porto)
Voo das Aves (1995/96)
Desenhar é a integridade da arte. Não há possibilidade de trapacear. Ou é bom ou é ruim.
Salvador Dali
Se ao artista pertence a criação da obra, ao espectador compete recriá-la. Só assim a obra de arte é uma vivência.
A escola pode aperfeiçoar o artista, criá-lo, nunca; porque não se melhora senão o que já existe.
Paolo Mantegazza (1831-1910) neurologista, fisiologista e antropólogo
E assim começa o belo livro do pintor Nadir Afonso:
Sob as mais variadas formas, esta minha tendência para a lucubração é de família.
Meu pai padecia de doença nervosa e uma simples falta de lembrança perturbava-lhe o sono. Não raras vezes me interpelava na noite com perguntas destas " Como se chamava a tia de Montalegre?" E eu respondia: " Ricardina". Isto poderá parecer absurdo e fútil a quem está de fora; no entanto, só após o esclarecimento, o desassossego do meu pai cessava.
Quem sai aos seus não degenera: recebi por sucessão algumas preocupações e crises congéneres.
- Mas o que tem a tia de Montalegre a ver com o Universo?
Tem muito que ver; as mesmas inquietações nos levam a procurar respostas. Meu pai lia Flammarion. As mais avançadas teorias sobre o cosmos não tinham chegado à nossa terra natal, e, segundo aquele astrónomo, a trajectória rectilínea dum projéctil lançado no espaço seria eterna e infinita. Esta concepção dos céus criava em mim fortes perturbações-
- Só se incomoda com estas coisas quem quer.
Certo, mas melhor seria dizer que só não se incomoda com estas coisas quem pode.
Não temos necessidade de conhecer a Geometria do Universo nem o nome da tia de Montalegre, mas temos necessidade de dormir. Não me meto no trabalho dos grandes da ciência; não sou versado em filosofia, nem uma só preocupação que a outros importe me identifica como escritor: o Universo é que se mete comigo, e se me interrogo sobre ele, é para tranquilizar em mim uma opressiva carência de compreensão.
(...)
Nadir Afonso (2010), Universo e Pensamento, Afrontamento, p.5
É o pensamento da morte que no final nos ajuda a viver.
Umberto Saba
A arte é a apoteose da solidão. Nada mostra do naufrágio, do mistério, do obscuro Eu. Ensina a ver.
sophia de mello breyner andresen