Sob um grande céu pardacento, muma grande planície arenosa, sem caminhos, sem verdura, sem um cardo, sem uma urtiga, encontrei alguns homens que caminhavam curvados.
Cada um deles levava às costas uma enorme Quimera, tão pesada como um saco de farinha, ou de carvão, ou como o equipamento dum soldado romano de infantaria.
Mas a fera monstruosa não era só um peso inerte; pelo contrário, envolvia e oprimia o homem com os seus músculos elásticos e poderosos: agarrava-se, com duas grandes garras, ao peito da sua montadura; e a cabeça fabulosa encimava o frontal do homem, como um daqueles horríveis capacetes com que os antigos guerreiros esperavam aumentar o pavor do inimigo.
Interroguei um desses homens, e quis saber para onde iam assim. Respondeu-me que nada sabia, nem ele, nem os outros; mas que, evidentemente, iam para qualquer parte, pois que eram impelidos por um impulso invencível de caminhar.
Charles Baudelaire, O Spleen de Paris - Pequenos Poemas em Prosa (1991, pág 21), Tradução de António Pinheiro de Guimarães, Relógio d´Água.
A Música
A música p'ra mim tem seduções de oceano!
Quantas vezes procuro navegar,
Sobre um dorso brumoso, a vela a todo o pano,
Minha pálida estrela a demandar!
O peito saliente, os pulmões distendidos
Como o rijo velame d'um navio,
Intento desvendar os reinos escondidos
Sob o manto da noite escuro e frio;
Sinto vibrar em mim todas as comoções
D'um navio que sulca o vasto mar;
Chuvas temporais, ciclones, convulsões
Conseguem a minh'alma acalentar.
— Mas quando reina a paz, quando a bonança impera,
Que desespero horrível me exaspera!
Charles Baudelaire, As Flores do Mal
Arrasta-me por vezes como um mar, a música!
Baudelaire, As Flores do mal, Assírio & Alvim, p. 185
Muito Tempo! pra sempre! nessa crina espessa
A minha mão rubis, pérolas, safiras há-de
Semear, pra que nunca o meu desejo esqueças!
Pois não és o oásis onde sonho, o frasco
Por onde aos tragos bebo o vinho da saudade?
Baudelaire, As Flores do Mal, Assírio & Alvim, p.93
Beleza
Eu sou bela, ó mortais! como um sonho de pedra,
E meu seio, onde todos vem buscar a dor,
É feito para ao poeta inspirar esse amor
Mudo e eterno que no ermo da matéria medra.
No azul, qual uma esfinge, eu reino indecifrada;
Conjugo o alvor do cisne a um coração de neve;
Odeio o movimento e a linha que o descreve,
E nunca choro nem jamais sorrio a nada.
Os poetas, diante do meu gesto de eloquência,
Aos das estátuas mais altivas semelhantes,
Terminarão seus dias sob o pó da ciência;
Pois que disponho, para tais dóceis amantes,
De um puro espelho que idealiza a realidade.
O olhar, meu largo olhar de eterna claridade!
Baudelaire
sophia de mello breyner andresen