Se me vem tanta glória só de olhar-te,
Se pena desigual deixar de ver-te;
Se presumo com obras merecer-te,
Grão paga de um engano é desejar-te.
Se aspiro por quem és a celebrar-te,
Sei certo por quem sou que hei-de ofender-te;
Se mal me quero a mim por bem querer-te,
Que prémio querer posso mais que amar-te?
Porque um tão raro amor não me socorre?
Ó humano tesouro! Ó doce glória!
Ditoso quem à morte por ti corre!
Sempre escrita estarás nesta memória;
E esta alma viverá, pois por ti morre,
Porque ao fim da batalha é a vitória.
Luís de Camões
Nem no campo flores,
Nem no céu estrelas,
Me parecem belas
Como os meus amores.
Camões, Endechas a Bárbara Escrava
Porque, enfim, tudo passa;
Não sabe o tempo ter firmeza em nada;
E nossa vida escassa
Foge tão apressada
que quando se começa é acabada.
Camões, Ode IX, Da brevidade da vida
Sôbolos Rios que Vão é o título do novo livro de António Lobo Antunes. É uma apropriação do primeiro verso do célebre poema de Camões, que por sua vez é uma glosa do Salmo 137.
O discurso literário constrói-se com sentidos cruzados, mascarados e onde nada nos é dado. A narrativa encena a verdade.
E há razões para pensar que o sentido da escolha deste título não se manifestará.
O leitor antuniano não estranha; conhece a afirmação de Lobo Antunes: Quanto mais silêncio houver num livro, melhor ele é.
Sôbolos rios que vão
por Babilónia, me achei,
Onde sentado chorei
as lembranças de Sião
e quanto nela passei.
Ali, o rio corrente
de meus olhos foi manado,
e, tudo bem comparado,
Babilónia ao mal presente,
Sião ao tempo passado.
Ali, lembranças contentes
n'alma se representaram,
e minhas cousas ausentes
se fizeram tão presentes
como se nunca passaram.
Ali, depois de acordado,
co rosto banhado em água,
deste sonho imaginado,
vi que todo o bem passado
não é gosto, mas é mágoa.
E vi que todos os danos
se causavam das mudanças
e as mudanças dos anos;
onde vi quantos enganos
faz o tempo às esperanças.
Ali vi o maior bem
quão pouco espaço que dura,
o mal quão depressa vem,
e quão triste estado tem
quem se fia da ventura.
Vi aquilo que mais val,
que então se entende milhor
quanto mais perdido for;
vi o bem suceder o mal,
e o mal, muito pior,
E vi com muito trabalho
comprar arrependimento;
vi nenhum contentamento,
e vejo-me a mim, que espalho
tristes palavras ao vento.
Luís Vaz de Camões - Redondilhas de Sião e de Babel
(...)
Que dias há que n'alma me tem posto
um não sei quê, que nasce não sei onde,
vem não sei como, e dói não sei porquê.
Camões
A poesia camoniana que tem resistido ao desgaste do tempo, é a que utiliza uma linguagem mais liberta dos cânones estilísticos da época (séc. XVI).
Este poema é imperecível.
Erros meus, má Fortuna, Amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a Fortuna sobejaram,
Que para mim bastava Amor somente.
Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas que passaram,
Que já as frequências suas me ensinaram
A desejos deixar de ser contente.
Errei todo o discurso de meus anos;
Dei causa a que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanças.
De Amor não vi senão breves enganos.
Oh! Quem tanto pudesse, que fartasse
Este meu duro Génio de vinganças!
Camões, Sonetos
Camões explora neste soneto, as recordações do dia da partida para a Índia que o separaram da sua amada.
As contraposições e as contradições do amor, próprias da poesia do século XVI, estão aqui presentes. Neste caso, surgem entre o mundo interior e o mundo exterior.
O sentido do último terceto pode ser interpretado como uma alusão ao mito de Orfeu que com o seu canto fez cessar o sofrimento das almas do Inferno.
Aquela triste e leda madrugada
Cheia toda de mágoa e de piedade,
Enquanto houver no mundo saudade
Quero que seja sempre celebrada.
Ela só, quando amena e marchetada
Saía, dando ao mundo claridade,
Viu apartar-se de uma outra vontade,
Que nunca poderá ver-se apartada.
Ela só viu as lágrimas em fio.
Que de uns e de outros olhos derivadas,
Se acrescentaram em grande e largo rio.
Ela ouviu as palavras magoadas
Que puderam tornar o fogo frio
E dar descanso às almas condenadas.
Camões, Sonetos
sophia de mello breyner andresen