Procida, Nápoles
O carteiro de Pablo Neruda é um filme que não esquecemos. Foi na ilha de Procida que ganhou corpo. Há pouco tempo, em Abril, visitei-a. Tendo Neruda como guia, confirmei: Procida é autêntica, ainda. Aqui, “ a claridade está presa”.
Sobre o jovem carteiro não posso falar. Não o encontrei; e não o procurei. Mas a sua alma aprendiz do Amor, da Amizade e das Metáforas, acompanhou os passos deste itinerário.
Um filme sobre a dimensão ética do agir e as subtilezas que radicam na construção do Homem enquanto agente moral, isto é, enquanto pessoa. A construção é delicada: na linguagem e no silêncio. É também um encontro com Camus, Nick Cave e Warren Ellis.
(Re)visitação. Uma viagem pela Europa do século XX e um encontro com a História, que se faz insistentemente presente. Planos, e rupturas, sobre as migrações, a memória, o amor e a morte. Sobre o Tempo. E muita poesia.
Muito bela a música e a fotografia.
O drama dos migrantes ilegais.
Morre, aos 63 anos, o actor Robin Williams (21 de julho de 1951-11 de agosto de 2014).
Ó Capitão! meu Capitão! Finda é a temível jornada,
Vencida cada tormenta, a busca foi laureada.
O porto é ali, os sinos ouvi, exulta o povo inteiro,
Com o olhar na quilha estanque do vaso ousado e austero.
Mas ó coração, coração!
O sangue mancha o navio,
No convés, meu Capitão
Vai caído, morto e frio.
Ó Capitão! meu Capitão! Ergue-te ao dobre dos sinos;
Por ti se agita o pendão e os clarins tocam teus hinos.
Por ti buquês, guirlandas… Multidões as praias lotam,
Teu nome é o que elas clamam; para ti os olhos voltam,
Capitão, querido pai,
Dormes no braço macio…
É meu sonho que ao convés
Vais caído, morto e frio.
Ah! meu Capitão não fala, foi do lábio o sopro expulso,
Meu calor meu pai não sente, já não tem vontade ou pulso.
Da nau ancorada e ilesa, a jornada é concluída.
E lá vem ela em triunfo da viagem antes temida.
Povo, exulta! Sino, dobra!
Mas meu passo é tão sombrio…
No convés meu Capitão
Vai caído, morto e frio.
Walt Whitman
Acabei de ver "Hannah Arendt". Tendo como pretexto o julgamento de Adolf Eichmann, o filme expõe a radicalidade do acto de pensar e explica-nos, de forma clara, que a "banalidade do mal" resulta de um conjunto de actos rotineiros, acessíveis a qualquer ser, tão rotineiros que se torna impossível "cumprir as exigências da justiça". Quando os seres humanos se recusam a ser pessoas e se recusam a pensar, tornam-se incapazes de realizar juízos morais e as categorias éticas, que balizam a acção e o pensamento, desaparecem. De súbito, estamos perante " As origens do Totalitarismo", que Hannah avalia: "compreender não é perdoar". Deste modo, e quando Hannah afirma que "a manifestação do vento do pensamento não é pensar", mostra-nos a especificidade da problematização filosófica: a radicalidade, a universalidade, a autonomia e a historiciade. Uma lição, portanto.
O filme coloca ainda um vasto conjunto de questões, que atravessam a obra da filósofa, como as noções de aparência, realidade, culpa, perdão, justiça...permitindo-nos fazer uma comparação com o momento vivido pela sociedade portuguesa: o "mal" assola-nos, restará alguém para culpar, entre O Passado e o Futuro?
Lola é um filme belíssimo. Os planos narrativos edificam a história, quase documental, de duas avós unidas por uma tragédia, apesar de estarem em lados distintos. Uma é avó de um rapaz que matou um homem durante um assalto e a outra é avó da vítima. Lutam contra o esquecimento dos seus netos, numa cidade consumida por profundas injustiças sociais.
Um filme sobre a determinação da vontade, ainda que encarcerada em corpos frágeis e trespassados pelas tempestades da natureza e da vida.
Neste filme, são os olhos do espectador que dissolvem os dilemas morais mas cansam-se de tanta verdade...
Em Lola, o realizador filipino Brillante Mendoza liberta, pela força da lentidão, um fragmento de realidade.
Primavera, Verão, Outono, Inverno...Primavera. Neste filme de Kim Ki-duk, as imagens dialogam com a temporalidade (tudo o que se constitui no tempo e está sujeito às consequências da sua passagem) e com o sentido da existência humana. Um percurso de silêncio absoluto, entre o aqui e o eterno. Um olhar sobre a construção da dimensão ética do homem. Um filme onde o instante é compreensivelmente uma inserção paradoxal da eternidade no tempo. Uma estética inesquecível.
O Núcleo de Filosofia e Cinema passou o filme Água (2005) da realizadora Deepa Mehta. A fita é um olhar impressionante sobre as condições de vida das viúvas hindus.
Na Índia do século passado, a tradição ditava que as mulheres viúvas, ainda que sejam crianças de oito anos, vivessem invisíveis na sociedade, sem referências familiares e sociais. Apesar disso, as mais jovens, e para assegurar a sobrevivência de todas, prostituem-se sob o olhar silencioso mas cúmplice da sociedade. No corpo e na alma destas mulheres o desespero é o pecado vivido na solidão da fé. Depois de Fogo (1996) e de Terra (1998) só a água é redentora e mediadora do exercício de esquecimento absoluto.
Do princípio ao fim, o filme coloca de forma persistente a questão do horizonte de sentido e do absurdo de existir.
Ghandi está presente em cada instante. As suas ideias abrem brechas nos costumes, desafiando a reivindicação de um pensamento autónomo relativamente à religião.
Um filme de planos belos e sensíveis. Imperdível.
O novo filme de David Cronenberg, Cosmopolis, dá-nos o mundo em vinte e quatro horas. A narrativa passa-se em Manhattan, local de todas as "assimetrias", dentro de uma limusine onde Packer vive num ambiente claustrofóbico.
Através do vidro do carro- alusão ao mundo virtual- assistimos à desconstrução de um homem rico, um homem profundamente desamparado e sitiado na vertigem do capitalismo contemporâneo. Um filme onde as personagens se afirmam pelo rosto e pela palavra (à semelhança da Pólis grega), impelindo-as pelo discurso até à queda final. Entretanto, nesta viagem intempestiva, somos fustigados por temas que reconhecemos presentes na sociedade contemporânea: o individualismo, a violência quotidiana, a agressividade dos grandes espaços desumanizados, o progresso científico e técnico, a sociedade de consumo, a ausência de relações afectivas sólidas, a fantasia, a náusea de existir, a morte...
Apesar do filme provocar críticas "assimétricas", gostei muito e aconselho.
Só hoje vi o filme Mãe e Filho, do realizador russo Alexander Sokurov. É um filme imenso, tecido sobre o último dia de vida de uma mãe que recebe o carinho comovente e infinito do seu filho adulto.
As personagens principais? O Amor, os elementos e os sons da natureza, uma borboleta..., a fragilidade da força da existência humana.
Senti, profundamente, o entrelaçamento dos corpos presentes, como que querendo ser um só, no nascer e no morrer, numa espécie de eterno retorno sobre o amor cósmico.
O realizador fecha a narrativa com a morte da mãe e com o sentido profundo do desamparo essencial do filho; e com a consciência de ambos sobre a separação fundante e radical dos ser humano enquanto existente.
Um filme tristemente belo e verdadeiro sobre os caminhos da solidão da alma humana, apesar do amor. Uma experiência que nos ensina que no amor não há pressa, nem propósito.
Se, como entenderam os gregos, a função real da arte é exprimir sentimentos e transmitir compreensão, então estamos na presença da obra de arte.
Dorme um pouco, mãe, diz o filho. Eu volto já.
Para além de qualquer exame crítico, um critério: o belo tem que estar presente.
A trama do último filme de Gus Van Sant Os Inquietos ( Restless), desenvolve-se através da visão do mundo de dois adolescentes que o acaso aproxima. O realizador dá-nos três personagens desassossegadas: Enoch- o jovem adolescente que gosta de frequentar funerais; o fantasma- um piloto kamikase da 2ª Guerra Mundial; Annabel- a jovem paciente que sofre de câncro e que estuda apaixonadamente Darwin. Além destas, há a Morte e há a Vida. É um filme que desfocaliza as angústia do quotidiano vivido para não as obnubilar, quando se constata que a certeza de morrer é a pele da incerteza do acontecimento.
Estamos perante um exercício reflexivo sobre as questões-limite com que o homem contemporâneo se depara, mas sente dificuldade em colocar num lugar certo, como a morte e o amor. Uma narrativa preenchida por delicadas brechas ao som dos Beatles e Nico.
Van Sant dá-nos um final belíssimo através do silêncio e com um sorriso. Um Final com abertura para o infinito, na certeza de que cada um de nós é o primeiro a morrer, como aprendemos com Ionesco.
A Fita corre no King. Obrigatório ver.
Woody Allen, de novo. Meia-noite em Paris é um filme cuja leveza magistral nos transporta até às profundezas do ser que habita em cada um de nós, em cada Tempo.
Neste delírio estético encontramo-nos com Hemingway, Scott Fitzgerald, Buñuel, Picasso, Toulouse Lautrec, Dali e tantos outros que fazem crer a Gil- alter-ego de Allen-, que a vivência do passado é sempre superior à do presente. A lição está aqui. O filme mostra que a epopeia de cada um de nós assenta no presente. Sem presente não há passado; ele é a própria época de ouro. E depois há o jazz . E Paris - museu ao ar livre, em movimento- como pano de fundo nesta fascinante viagem. Neste filme, a vida é superior à arte.
sophia de mello breyner andresen