David Mourão-Ferreira (1927-1996)
Casas, carros, casas, casos.
Capital
encarcerada.
Colos, calos, cuspo, caspa.
Cautos, castas. Calvos, cabras.
Casos, casos… Carros, casas…
Capital
acumulado.
E capuzes. E capotas.
E que pêsames! Que passos!
Em que pensas? Como passas?
Capitães. E capatazes.
E cartazes. Que patadas!
E que chaves! Cofres, caixas…
Capital
acautelado.
Cascos, coxas, queixos, cornos.
Os capazes. Os capados.
Corpos. Corvos. Copos, copos.
Capital,
oh! capital,
capital
decapitada!
Na penumbra dos ombros é que tudo começa
quando subitamente só a noite nos vê
E nos abre uma porta nos aponta uma seta
para sermos de novo quem deixámos de ser
David Mourão- Ferreira, Obra Poética ( 1948-1988), p. 214
Nos agudos cristais do cilício da ausência,
em silêncio rebenta, em silêncio, o teu rosto...
David Mourão-Ferreira, Obra Poética (1948-1988), Presença, p. 92
aberta na tua mão.
Podia ter sido amor,
e foi apenas traição.
É tão negro o labirinto
que vai dar à tua rua. . .
Ai de mim, que nem pressinto
a cor dos ombros da Lua!
Talvez houvesse a passagem
de uma estrela no teu rosto.
Era quase uma viagem:
foi apenas um desgosto.
É tão negro o labirinto
que vai dar à tua rua...
Só o fantasma do instinto
na cinza do céu flutua.
Tens agora a mão fechada;
no rosto, nenhum fulgor.
Não foi nada, não foi nada:
podia ter sido amor.
David Mourão Ferreira, À Guitarra e à Viola
(1954-1960)
É quando um espelho, no quarto,
se enfastia;
Quando a noite se destaca
da cortina;
Quando a carne tem o travo
da saliva,
e a saliva sabe a carne
dissolvida;
Quando a força de vontade
ressuscita;
Quando o pé sobre o sapato
se equilibra...
E quando às sete da tarde
morre o dia
- que dentro de nossas almas
se ilumina,
com luz lívida, a palavra
despedida.
David Mourão Ferreira
Há sempre na vigia uma ilha que oscila
entre a gola do Mar e o turbante do céu
Mas de todas somente a que se chama Ítaca
parece a rapariga à espera de eu ser eu
David Mourão-Ferreira, Obra Poética, Presença, p.210
Era uma folha pousada
no cotovelo do vento;
e pairava, deslumbrada,
entre morte e movimento.
Era uma folha: lembrava,
de tão frágil, o momento
em que a vida ficava
escrava do teu juramento.
Era uma folha: mais nada.
Antes fosse esquecimento!
David Mourão-Ferreira, Obra Poética, 1948-1988, Editorial Presença, 2006, p. 109
E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos. E por vezes
encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos.
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes
ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos.
E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos.
David Mourão- Ferreira
Não me digas segredos nessa voz
em que dizes também o que não dizes.
Fica o silêncio ainda mais atroz
depois de entremostradas as raízes.
Prefiro que não digas nada, nada.
Que não sejas arbusto nem canção,
mas sombra entreaberta, recortada
por um lívido e breve coração.
Já que não podes dar-me o que eu sonhara
- inteireza de ramos e raízes-,
ao menos dá-me, intacta, a sombra clara
onde se esbatem vultos e perfis.
Pois nessa solidão melhor é ter
a sombra que um segredo de mulher.
David Mourão-Ferreira, Obra Poética, Presença, p. 68
Desvio dos teus ombros o lençol
que é feito de ternura amarrotada,
da frescura que vem depois do Sol,
quando depois do Sol não vem mais nada...
Olho a roupa no chão: que tempestade!
há restos de ternura pelo meio,
como vultos perdidos na cidade
em que uma tempestade sobreveio...
Começas a vestir-te, lentamente,
e é ternura também que vou vestindo,
para enfrentar lá fora aquela gente
que da nossa ternura anda sorrindo...
Mas ninguém sonha a pressa com que nós
a despimos assim que estamos sós!
David Mourão Ferreira, Infinito Pessoal ou A Arte de Amar
Deixa ficar comigo a madrugada,
para que a luz do Sol me não constranja.
Numa taça de sombra estilhaçada,
deita sumo de lua e de laranja.
Arranja uma pianola, um disco, um posto,
onde eu ouça o estertor de uma gaivota...
Crepite, em derredor, o mar de Agosto...
E o outro cheiro, o teu, à minha volta!
Depois, podes partir. Só te aconselho
que acendas, para tudo ser perfeito,
à cabeceira a luz do teu joelho,
entre os lençóis o lume do teu peito...
Podes partir. De nada mais preciso
para a minha ilusão do Paraíso.
David Mourão-Ferreira
Os teus olhos
exigindo
ser bebidos
Os teus ombros
reclamando
nenhum manto...
David Mourão-Ferreira
Inscrição sobre as Ondas
Mal fora iniciada a secreta viagem,
um deus me segredou que eu não iria só.
Por isso a cada vulto os sentidos reagem,
supondo ser a luz que o deus me segredou.
David Mourão-Ferreira, Obra Poética, Presença, p. 27
Todo o dia senti, bem funda em mim,
a tortura do beijo que não demos:
lago sereno, preso num jardim,
saudoso dum nenhum sulcar de remos...
David Mourão-Ferreira, Obra Poética, Presença, p. 30
... As minhas mãos são o teu único vestido!
David Mourão-Ferreira
Voo
Entre os olhos beijar-te
Fazer de tuas pálpebras
asas da minha boca
David Mourão-Ferreira, Obra Poética, Presença, p.282
Quem foi que à tua pele conferiu esse papel
de mais que tua pele ser pele da minha pele
David Mourão-Ferreira
Consuma-se o eterno em cada instante
na crença de reservas infinitas
Importa mais o vértice da chama
que a cera a consumir ou consumida
David Mourão-Ferreira, Obra Poética (1948-1988),Presença, p.354
Deixa ficar comigo a madrugada,
para que a luz do Sol me não constranja.
Numa taça de sombra estilhaçada,
deita sumo de lua e de laranja.
Arranja uma pianola, um disco, um posto,
onde eu ouça o estertor de uma gaivota...
Crepite, em derredor, o mar de Agosto...
E o outro cheiro, o teu, à minha volta!
Depois, podes partir. Só te aconselho
que acendas, para tudo ser perfeito,
à cabeceira a luz do teu joelho,
entre os lençóis o lume do teu peito...
Podes partir. De nada mais preciso
para a minha ilusão do Paraíso.
David Mourão-Ferreira, Obra Poética- Infinito Pessoal (1959-1962), Presença, pp.177-178
Eu vi a eternidade nos teus dedos!
Eu vi a eternidade, e amedrontou-me
saber, tão de repente, tais segredos.
- Eu não mereci, sequer, saber-te o nome.
David Mourão-Ferreira, Obra Poética -1948-1988, Presença, 2006 p. 39
sophia de mello breyner andresen