Vem dos lados do rio, as mãos fresquíssimas, algumas gotas de água ainda nos cabelos. Com a manhã chega o anónimo respirar do mundo. Um cheiro a pão fresco invade o pátio todo. Vem dos lados do rio: para levar à boca, ou ao poema.
XI
Olhos postos na terra, tu virás
no ritmo da própria primavera,
e como as flores e os animais
abrirás nas mãos de quem te espera.
Eugénio de Andrade, As Mãos e Os Frutos, Limiar, p. 41
(Póvoa de Atalaia, 19 de Janeiro de 1923 — Porto, 13 de Junho de 2005)
Que tristeza tão inútil essas mãos
que nem sempre são flores
que se dêem:
abertas são apenas abandono,
fechadas são pálpebras imensas
carregadas de sono.
Eugénio de Andrade
Acorda-me
um rumor de ave.
Talvez seja a tarde
a querer voar.
A levantar do chão
qualquer coisa que vive,
e é como um perdão
que não tive.
Talvez nada.
Ou só um olhar
que na tarde fechada
é ave.
Mas não pode voar.
Eugénio de Andrade, Os Amantes Sem Dinheiro ( 1947-1949), Limiar, pág 92
É a música, este romper do escuro.
Vem de longe, certamente doutros dias,
doutros lugares. Talvez tenha sido
a semente de um choupo, o riso
de uma criança, o pulo de um pardal.
Qualquer coisa em que ninguém
sequer reparou, que deixou de ser
para se tornar melodia. Trazida
por um vento pequeno, um sopro,
ou pouco mais, para tua alegria.
E agora demora-se, este sol materno,
fica comigo o resto dos dias.
Como o lume, ao chegar o inverno.
Eugénio de Andrade, Os Sulcos da Sede
Entre pinheiros
três casas.
Uma azenha parada.
Uma torre erguida
de fraga em fraga
contra o céu de cal.
E um silêncio talhado
para o voo de um moscardo
alastra de casa em casa,
sobe à torre abandonada
e sobe a azenha parada
tomba desamparado.
Eugénio de Andrade, Obra de Eugénio de Andrade / 1 – Primeiros Poemas, Porto,
Fundação Eugénio de Andrade, 2004
E de súbito desaba o silêncio.
É um silêncio sem ti,
sem álamos,
sem luas.
Só nas minhas mãos
ouço a música das tuas.
Eugénio de Andrade
Guardo na minha pele esta viagem. Para sentir o lento movimento dos dias.
Uma coisa é habitar a pele,
outra, ter a noite por fragata.
Eugénio de Andrade
Surdo, subterrâneo rio de palavras
me corre lento pelo corpo todo;
amor sem margens onde a lua rompe
e nimba de luar o próprio lodo.
Correr do tempo
ou só rumor do frio
onde o amor se perde e a razão de amar
- surdo, subterrâneo, impiedoso rio,
para onde vais, sem eu poder ficar?
Eugénio de Andrade
Nada podeis contra o amor.
Contra a cor da folhagem,
contra a carícia da espuma,
... contra a luz, nada podeis.
Podeis dar-nos a morte,
a mais vil, isso podeis
- e é tão pouco.
Eugénio de Andrade
Escuta, escuta: tenho ainda
uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai
salvar o mundo, não mudará
a vida de ninguém – mas quem
é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido
da vida de alguém?
Escuta-me, não te demoro.
É coisa pouca, como a chuvinha
que vem vindo devagar.
São três, quatro palavras, pouco
mais. Palavras que te quero confiar.
Para que não se extinga o seu lume,
o seu lume breve.
Palavras que muito amei,
que talvez ame ainda.
Elas são a casa, o sal da língua.
Eugénio de Andrade
Respiro o teu corpo:
sabe a lua-de-água
ao amanhecer,
sabe a cal molhada,
sabe a luz mordida,
sabe a brisa nua,
ao sangue dos rios,
sabe a rosa louca,
ao cair da noite
sabe a pedra amarga,
sabe à minha boca.
Eugénio de Andrade
E de súbito desaba o silêncio.
É um silêncio sem ti,
sem álamos,
sem luas.
Só nas minhas mãos
oiço a música das tuas.
Eugénio de Andrade.
Despe-te
Não há outro caminho.
Eugénio de Andrade
Respiro o teu corpo:
sabe a lua-de-água
ao amanhecer,
sabe a cal molhada,
sabe a luz mordida,
sabe a brisa nua,
ao sangue dos rios,
sabe a rosa louca,
ao cair da noite
sabe a pedra amarga,
sabe à minha boca...
Eugénio de Andrade
A mão
que entregava à tua
os primeiros sinais de verão
já não sabe o caminho- é como se
em vez de aprender fosse cada vez mais
e mais ignorante. Ou ignorar
fosse todo o saber.
Eugénio de Andrade
Ao silêncio que me espera em cada esquina
ofereço o ramo ardente dos meus olhos.
Eugénio de Andrade
No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe.
Tudo porque já não sou
o menino adormecido
no fundo dos teus olhos.
Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.
Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.
Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.
Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.
Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!
Olha - queres ouvir-me? -
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;
ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;
ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal...
Mas - tu sabes - a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber.
Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.
Boa noite. Eu vou com as aves.
Eugénio de Andrade
Devias estar aqui rente aos meus lábios
para dividir contigo esta amargura
dos meus dias partidos um a um
- Eu vi a terra limpa no teu rosto,
Só no teu rosto e nunca em mais nenhum.
Eugénio de Andrade
sophia de mello breyner andresen