As cidades mencionadas por Marco Polo a Kublai Khan têm todas nomes de mulher. Por culpa dos espelhos, parei em Valdrada, cidade edificada nas margens de um largo lago. Uma viagem sem acessórios, porque, aqui, e em todas as cidades descritas por Italo Calvino, o viajante necessita apenas de si mesmo. Cidade sem lugar nem tempo, mas onde a universalidade da linguagem (poética) transporta a humanidade toda.
Requisito único: na imaginação, a liberdade...
Um livro mágico. Não me canso de o ler.
III
As cidades e os olhos. 1.
Os antigos construíram Valdrada nas margens de um lago com casas todas varandas umas por cima das outras e ruas altas que fazem assomar à água os parapeitos em balustre. Assim o viajante ao chegar vê duas cidades: uma direita sobre o lago e uma reflectida de pernas para o ar. Não existe nem acontece coisa numa Valdrada que a outra Valdrada não repita, porque a cidade foi construída de modo a que todos os seus pontos fossem reflectidos pelo seu espelho, e a Valdrada na água contém não só todas as estrias e os remates das fachadas que se elevam por cima do lago mas também o interior das casas com os tectos e pavimentos, a perspectiva dos corredores, os espelhos dos armários.
Os habitantes de Valdrada sabem que todos os seus actos são ao mesmo tempo esse acto e a sua imagem especular, a que pertence a especial dignidade das imagens, e esta sua consciência proíbe-os de se abandonarem por um só instante ao acaso e ao esquecimento.
(...)
(A capa desta edição da Teorema - reprodução do quadro de Bruegel, A Torre de Babel)
O que é um Clássico? Isto no que diz respeito aos clássicos antigos tanto quanto aos clássicos modernos.
Haverá distinção entre ler e reler uma obra?
Não, não há. Nem tem muita importância.
Só os episódios de cada vida - no espaço e no tempo - pormenorizam a distinção.
Rerrelamos.
1. Os clássicos são os livros de que se costuma ouvir dizer: " Estou a reler..." e nunca " Estou a ler ".
4. De um clássico toda a releitura é uma leitura de descoberta igual à primeira.
5. De um clássico toda a primeira leitura é na realidade uma releitura.
6. Um clássico é um livro que nunca acabou de dizer o que tem a dizer.
14. É um clássico o que persiste como ruído de fundo mesmo onde dominar a actualidade mais incompatível.
Italo Calvino, Porquê Ler os Clássicos?, Teorema (1994, pág 7, 9, 12), Tradução de José Colaço Barreiros
A única asserção verdadeira consiste em afirmar que ler os clássicos é melhor do que não ler os clássicos.
sophia de mello breyner andresen