Descrição
De acordo com Byung-Chul Han, uma das mais inovadoras vozes filosóficas surgidas na Alemanha, o Ocidente está a tornar-se uma sociedade do cansaço.
Segundo este autor germano-coreano, qualquer época tem as suas doenças características. Houve uma época bacteriana, que terminou com a descoberta dos antibióticos. A época viral foi ultrapassada através das técnicas imunológicas, apesar dos periódicos receios de uma pandemia gripal.
O início do século XXI, do ponto de vista patológico, seria sobretudo neuronal. A depressão, as perturbações de atenção devidas à hiperactividade e a síndroma do desgaste profissional definem o panorama atual.
É uma obra com vinte e três histórias. A primeira intitula-se “Estilo”. Um exercício sobre a forma de arrumar o vazio. O método, quando bem aplicado, ao quotidiano por exemplo, desembaraça-nos da “desordem estuporada da vida”. Portanto, crie o seu Estilo. Assente na arte da fuga, com passos, o Estilo permite-nos caminhar para o essencial: o afastamento. Quem se afasta, compreende. Aplique-o todos os dias. O segredo está na repetição. Compassos de movimento circular. Inexoravelmente.
“É forçoso encontrar um estilo. Seria bom colocar grandes cartazes nas ruas, fazer avisos na televisão e nos cinemas. Procure o seu estilo, se não quer dar em pantanas. (...). Consegui um estilo. Aplico-o à noite, quando acordo às quatro da madrugada. É simples: quando acordo aterrorizado, vendo as grandes sombras incompreensíveis erguerem-se no meio do quarto, quando a pequena luz se faz na ponta dos dedos (...) ...Começo a fazer o meu estilo. Admirável exercício, este. Às vezes uso o processo de esvaziar as palavras. Sabe como é? (...) Pego numa palavra fundamental: Amor, Doença, Medo, Morte, Metamorfose. Digo-a baixo vinte vezes. Já nada significa. É um modo de alcançar o estilo. (...)".
Sob um grande céu pardacento, muma grande planície arenosa, sem caminhos, sem verdura, sem um cardo, sem uma urtiga, encontrei alguns homens que caminhavam curvados.
Cada um deles levava às costas uma enorme Quimera, tão pesada como um saco de farinha, ou de carvão, ou como o equipamento dum soldado romano de infantaria.
Mas a fera monstruosa não era só um peso inerte; pelo contrário, envolvia e oprimia o homem com os seus músculos elásticos e poderosos: agarrava-se, com duas grandes garras, ao peito da sua montadura; e a cabeça fabulosa encimava o frontal do homem, como um daqueles horríveis capacetes com que os antigos guerreiros esperavam aumentar o pavor do inimigo.
Interroguei um desses homens, e quis saber para onde iam assim. Respondeu-me que nada sabia, nem ele, nem os outros; mas que, evidentemente, iam para qualquer parte, pois que eram impelidos por um impulso invencível de caminhar.
Charles Baudelaire, O Spleen de Paris - Pequenos Poemas em Prosa (1991, pág 21), Tradução de António Pinheiro de Guimarães, Relógio d´Água.
8 de Junho de 1903 - 17 de Dezembro de 1987
E é por isso que, no fundo, não tenho por mim mesma mais do que um interesse limitado. Tenho a impressão de ser um instrumento através do qual passaram correntes, vibrações. Isto é válido para todos os meus livros e direi mesmo que para toda a minha vida. Talvez para todas as vidas; e os melhores de nós talvez não sejam, também eles, mais que cristais trespassados. Assim, a propósito dos meus amigos, vivos ou mortos, repito-me muitas vezes a frase admirável que me disseram ser de Saint-Martin, “o filósofo desconhecido” do século XVIII, tão desconhecido de mim que nunca li uma linha dele e nunca verifiquei a citação: “Há seres através dos quais Deus me amou.” Tudo vem de mais longe e vai mais longe que nós. Por outras palavras, tudo nos ultrapassa e sentimo-nos humildes e maravilhados por termos sido assim trespassados e ultrapassados.
Marguerite Yourcenar, De Olhos Abertos
" Que Deus é este que toma a mulher de um homem honrado e nela deposita a sua semente?"
Acabei de ler o primeiro romance de Nuno Lobo Antunes. Em Nome do Pai é uma narrativa ficcionada sobre a vida do pai de Jesus. Antes de morrer, José dá-nos conta das circunstâncias que o colocaram, aleatoriamente, entre o céu e a terra e como o Senhor lhe perturbou o equilíbrio condenando-o à "tortura do imaginado". Assistimos ao relato de um homem desesperado e de coração escarpado que se busca a si mesmo porque não alcança o fim último da ordem do sobrenatural.
José não compreende o que lhe aconteceu, por que razão foi o escolhido e, portanto, desconfia. Através do exercício de interrogação profunda, da paisagem interior, rejeita o destino que lhe roubou a possibilidade de viver entre os homens como um igual e rejeita também a ruptura da homogeneidade do espaço e do tempo.
O pai de Jesus, o artífice das formas belas, quer apenas existir e Nuno Lobo Antunes realiza-lhe o desejo íntimo de ser, homem, oferecendo-lhe um corpo. Com ele, mas sempre sob as estrelas, o homem que ama fabrica a transcendência. O sentimento, o amor salva-o.
Ao longo da leitura e em diversos momentos, senti o desejo de acompanhar a exposição pública desta alma arcaica de olhos bem fechados, como sinal de recusa desta servidão universal.
A escrita, muito bela, de Nuno Lobo Antunes faz deste livro um grande romance. Um excelente retrato sobre a condição humana. Recomendo-o vivamente.
Em O Amigo, Agamben apresenta-nos o heteros autos como alteridade imanente na mesmidade e define a amizade nos limites da con-partilha. Não há na amizade nenhuma relação entre sujeitos: é o próprio ser que é dividido, que não é idêntico a si, e o eu e o amigo são as duas faces - ou antes os dois pólos - desta con-partilha. Tendo como pré-texto um trecho da Ética Nicomaqueia de Aristóteles e depois de termos sido convidados a fazer a leitura em conjunto, Agamben discursa sobre a relação humana da amizade e sobre as bases ontológicas e políticas em que se auto-sustenta.
A amizade é a instância desse con-sentimento da existência do amigo no sentimento da sua própria existência.
Proposta de leitura do Le Monde Diplomatique - Edição Portuguesa, Dezembro 2012.
«Em 1944, Karl Polanyi publicou A Grande Transformação: as origens políticas e económicas do nosso tempo, obra em que analisou a estrutura do capitalismo no século XIX a partir de uma tese inovadora, de cariz marcadamente institucional e político: a Inglaterra não fora transformada apenas pela máquina a vapor, nem sequer pelas anteriores expansão do comércio mundial e revolução agrícola; não fora a industrialização per se que desencadeara os processos de conflito e de desorganização social que marcaram o longo século XIX. A miríade de motins, revoltas, movimentos genéricos de protesto, revoluções sociais e ciclos intensos e recorrentes de violência a estes associados e que caracterizaram as eras da revolução, do capital e do império, resultaram também da emergência de um conjunto de propostas intelectuais - de Ricardo a James Mill, passando por Marx -, progressivamente desenvolvidas no interior de instituições sociais várias, que postularam a prevalência do mercado enquanto forma histórica primordial de organização da sociedade. A Grande Transformação consistiu sim, essencialmente, na extensão do sistema de mercados a todas as esferas da vida humana, cuja lei da oferta e da procura passou a determinar autonomamente a afetação e a remuneração de fatores de produção como a terra (a natureza) - e o trabalho (ou seja, a própria utilização da vida humana). Assim, a principal preocupação de Polanyi foi a de demonstrar como se formaram historicamente, primeiro, os mercados nacionais e internacionais e, nesta sequência, como se passou de uma configuração caracterizada por trocas livres para uma outra, marcada por um intenso controlo político e social, em reação à grande crise de 1929 (...)»
Sinopse - Bulhosa
Sobre a lucidez de Saramago; e do riso (secreto e audível) que a envolve.
Penso que não cegamos, penso que estamos cegos. Cegos que vêem, cegos que, vendo, não vêem.
Quem Poderá Calcular a Órbita da sua Própria Alma?
As pessoas cujo desejo é unicamente a auto-realização, nunca sabem para onde se dirigem. Não podem saber. Numa das acepções da palavra, é obviamente necessário, como o oráculo grego afirmava, conhecermo-nos a nós próprios. É a primeira realização do conhecimento. Mas reconhecer que a alma de um homem é incognoscível é a maior proeza da sabedoria. O derradeiro mistério somos nós próprios. Depois de termos pesado o Sol e medido os passos da Lua e delineado minuciosamente os sete céus, estrela a estrela, restamos ainda nós próprios. Quem poderá calcular a órbita da sua própria alma?
Oscar Wilde, De Profundis
Depois de me instalar em Bouville constato, nos gestos dos seres com quem me cruzo, a razão de ser das palvras de Antoine Roquentin:
as coisas são inteiramente o que parecem - e por trás delas...não há nada.
As cores, mesmo pálidas, fazem-me feliz.
Meus olhos são capazes de tirar
fotografias. Sempre que me permito
ou com saliente tremura, ordeno, sinto,
Tudo o que cabe no meu campo de visão
- Uma cena de interior, folhas de nogueira, esbeltos
Estiletes de gélido estilicídio -
Permanece em fixação intraciliar
E duram um bom par de horas
E enquanto isso bastar-me-á
Cerrar os olhos e ver as folhas,
Ou a cena de interior, ou os troféus de água.
Vladimir Nabokov, Fogo Pálido, Canto Primeiro
Diz-se, Lolita é o romance de Vladimir Nabokov. É. Deu-lhe o reconhecimento merecido. Mas intrigante e desconcertante é acompanhar as satíricas aventuras de Fogo Pálido. O texto - hipertexto - é um poema em 999 versos, seguido de uma série de comentários ao próprio poema. Na nota bibliográfica da edição que leio, Eduardo Prado Coelho refere:
Em Fogo Pálido, trata-se também de um jogo narrativo: partindo do comentário supostamente universitário de um longo poema vemos erguer-se um poderoso espaço de ficção que nos perturba, arrasta e permanentemente nos desconcerta.
Um jogo hermético que se constitui em paródia. Apesar de o Canto Dois ser o mais apreciado, transcrevo o início do Canto Um. Pelos pássaros.
Fui a sombra do ampelis despenhando-se
No céu falso da vidraça;
Fui a nódoa de um tufo de cinzas - e
Vivi sempre, fluí, no céu reflectido.
E também por dentro me dupliquei,
A minha luz, maçã pousada:
Desvelando a noite, deixarei o vidrado negro
Suspender os móveis acima do solo
E que delícia o nevão que veio cobrir
O meu pedaço de terra, erguendo-se
Levando cama e cadeira a pairar
Sobre a neve lá fora, na terra de cristal!
A neve que cai: cada floco que paira
Lento e informe, opaco e corredio,
Branco sujo na placidez do dia
E os lariços abstractos à neutral luz.
E então os dois azuis graduais
Quando a noite une o olhar ao visto,
E de manhã, diamantes de gelo
Exprimindo espanto: que esporas cruzaram
Daqui para ali, a folha nua do caminho?
Ler daqui para ali no código do inverno:
Um ponto, seta de regresso...Pé de faisão
De anilhada beleza, tetraz sublime
Que encontra o seu oriente no meu quintal?
(...)
A poesia como atitude de religação essencial.
Sim, a poesia pode salvar o homem.
Czeslaw Milosw, O livro dos Saberes, p. 283
Folheando Homens Domésticos-Homens Selvagens, relembro que não há bom futuro sem inquietação no presente.
O autor da obra, Serge Moscovici, cita John Milton na página 38:
Não conhecer pormenorizadamente as coisas afastadas de nós
obscuras e subtis, mas conhecer
O que se encontra à nossa frente na
vida quotidiana,
É a sabedoria primordial; tudo o mais
é fumo.
ou vacuidade, ou tola impertinência,
E deixa-nos, nas coisas que mais nos
pertencem,
sem prática, sem preparação e sempre procurando.
Freud ensinou a escavar as ruínas da nossa história pessoal, prática que como método dá acesso a nós próprios e, sabemos, desperta o recalcamento.
Quando Norbert Hanold encontrou o baixo-relevo, não se lembrou de que, quando era pequeno, já tinha visto os pés da amiguinha numa posição semelhante, não se lembrou de nada, embora tudo o que a escultura causou nele derivasse desse elo.
Freud, Delírio e Sonhos na Gradiva de Jensen, Gradiva, p.66
A Gradiva de Jensen é um romance do escritor alemão Wilhem Jensen, publicado em 1903. É uma obra de leitura obrigatória tendo em conta a influência que exerceu na cultura europeia, em particular no movimento surrealista.
O romance narra as aventuras de um jovem arqueólogo alemão Norbert Hanold, obcecado pela imagem da jovem esculpida no baixo-relevo descrita no post anterior. Tendo o sonho como meio, Hanold desperta em Pompeia, cidade soterrada pela erupção do Vesúvio, no ano 79 d.C. De forma não linear, percebe-se que Gradiva- a mulher de mármore, dá lugar a Zoe-nome que significa vida-, um amor de infância.
Freud encontra neste romance terreno fértil para escavar e construir os caminhos que o tornaram conhecido, o delírio, a fantasia, o sonho e o despertar do erotismo adormecido- os processos de recalcamento. E assim, em 1907, Freud publica Delírios e Sonhos na Gradiva de Jensen, texto pioneiro no campo da interpretação psicanalítica da literatura.
A cultura pós-moderna representa o pólo "superestrutural" de uma sociedade que sai de um tipo de organização uniforme, dirigista, e que, para o fazer, mistura os últimos valores modernos, reabilita o passado e a tradição, revaloriza o local e a vida simples, dissolve a preeminência da centralidade, dissemina os critérios da verdade e da arte, legitima a afirmação da identidade pessoal de acordo com os valores de uma sociedade personalizada onde o que importa é que o indivíduo seja ele próprio, e onde tudo e todos têm, portanto, direito de cidade e a serem socialmente reconhecidos, sendo que nada deve doravante impor-se imperativa e duradouramente, e todas as opções, todos os níveis, podem coabitar sem contracção nem relegação. A cultura pós-moderna é descentrada e heteróclita, materialista e psi, porno e discreta, inovadora e rétro, consumista e ecologista, sofisticada e espontânea, espectacular e criativa; e o futuro não terá, sem dúvida, que decidir em favor de uma destas tendências, mas, pelo contrário, desenvolverá as lógicas duais, a co-presença flexível das antinomias.
Gilles Lipovetsky, A Era do Vazio
É no Homem que o Universo morde a cauda.
João Carlos Silva, Também Aqui Moram Os Deuses, Chiado Editora
sophia de mello breyner andresen