Gerês, 12 de Agosto
Aniversário
Mãe:
Que visita tão pura que me fizeste
Neste dia!
Era a tua memória que sorria
Sobre o meu berço.
Nu e pequeno como me deixaste,
Ia chorar de medo e de abandono.
Então vieste, e outra vez cantaste,
Até que veio o sono.
Miguel Torga, Diário IV, Coimbra (1973), pág 111.
Somos nós
As humanas cigarras!
Nós,
Desde os tempos de Esopo conhecidos.
Nós,
Preguiçosos insectos perseguidos.
Somos nós os ridículos comparsas
Da fábula burguesa da formiga.
Nós, a tribo faminta de ciganos
Que se abriga
Ao luar.
Nós, que nunca passamos
A passar!...
Somos nós, e só nós podemos ter
Asas sonoras,
Asas que em certas horas
Palpitam,
Asas que morrem, mas que ressuscitam
Da sepultura!
E que da planura
Da seara
Erguem a um campo de maior altura
A mão que só altura semeara.
Por isso a vós, Poetas, eu levanto
A taça fraternal deste meu canto,
E bebo em vossa honra o doce vinho
Da amizade e da paz!
Vinho que não é meu,
mas sim do mosto que a beleza traz!
E vos digo e conjuro que canteis!
Que sejais menestreis
De uma gesta de amor universal!
Duma epopeia que não tenha reis,
Mas homens de tamanho natural!
Homens de toda a terra sem fronteiras!
De todos os feitios e maneiras,
Da cor que o sol lhes deu à flor da pele!
Crias de Adão e Eva verdadeiras!
Homens da torre de Babel!
Homens do dia a dia
Que levantem paredes de ilusão!
Homens de pés no chão,
Que se calcem de sonho e de poesia
Pela graça infantil da vossa mão!
Miguel Torga
Nas horas baças que pedem um novo renascer, volto-me na direcção do "sítio geográfico vital gravado nos cromossomas". Gesto que me faz sentir, repito-o, que as fragas são firmes, as árvores nascem, a lua é bela, os homens são promessas. "E sinto Paz".
Não sei se vês, como eu vejo.
Pacificado,
Cair a tarde
Serena
Sobre o vale,
Sobre o rio,
Sobre os montes
E sobre a quietação
Espraiada da cidade.
Nos teus olhos não há serenidade
Que o deixe entender.
Vibram na lassidão da claridade.
E o lírico poema que me acontecer
Virá toldado de melancolia,
Porque daqui a pouco toda a poesia
Vai anoitecer.
Miguel Torga
Chaves, 6 de Setembro de 1986
Tempo — definição da angústia.
Pudesse ao menos eu agrilhoar-te
Ao coração pulsátil dum poema!
Era o devir eterno em harmonia.
Mas foges das vogais, como a frescura
Da tinta com que escrevo.
Fica apenas a tua negra sombra:
— O passado,
Amargura maior, fotografada.
Tempo...
E não haver nada,
Ninguém,
Uma alma penada
Que estrangule a ampulheta duma vez!
Que realize o crime e a perfeição
De cortar aquele fio movediço
De areia
Que nenhum tecelão
É capaz de tecer na sua teia!
Miguel Torga, Cântico do Homem
Miguel Torga, pseudónimo do médico Adolfo Correia Rocha, não escolhe por acaso o seu pseudónimo literário. Torga é uma planta transmontana, urze das serranias, com raízes fortes que a fixam às fragas e penedos áridos das montanhas.
A poesia de Torga retrata uma ligação profundamente solitária do Homem à Terra.
Ler Torga é respirar a memória da terra-berço, e qualquer coisa dentro de mim se acalma...
Poesia-chão, sentida na caligrafia da solidão...
Serra!
e qualquer coisa dentro de mim se acalma...
Qualquer coisa profunda e dolorida,
Traída,
Feita de terra
e alma.
Uma paz de falcão na sua altura
A medir as fronteiras:
Sob a garra dos pés a fraga dura,
E o bicho a picar estrelas verdadeiras...
Miguel Torga, Diário II
Deixem passar...
Havia sentinelas a guardar
A fronteira do sonho proibido.
Mas ergui, atrevido,
A voz de sonhador,
E passei
Como um rei,
Sem dar mostras do íntimo terror.
E cá vou a passar,
aterrado e sozinho,
A lembrar
O santo-e-senha com que abri caminho...
Miguel Torga, 1973
Ninguém ouve a canção, mas o ribeiro canta!
Canta, porque um alegre deus o acompanha!
Quantos mais tombos, mais a voz levanta!
Canta, porque vem limpo da montanha!
Espelho do céu, é quanto mais partido
Que mais imagens tem da grande altura.
E quebra-se a cantar, enternecido
De regar a paisagem de frescura.
Água impoluta da nascente,
És a pura poesia
Que se dá de presente
Às arestas da humana penedia..."
Miguel Torga, Odes.
O mar, em Torga. No Diário IV.
...um verso azul feito de espuma,
E de fúria e de bruma,...
Era uma vez, lá na Judeia, um rei.
Feio bicho, de resto:
Uma cara de burro sem cabresto
E duas grandes tranças.
A gente olhava, reparava e via
Que naquela figura não havia
Olhos de quem gosta de crianças.
E, na verdade, assim acontecia.
Porque um dia,
O malvado,
Só por ter o poder de quem é rei
Por não ter coração,
Sem mais nem menos,
Mandou matar quantos eram pequenos
Nas cidades e aldeias da nação.
Mas, por acaso ou milagre, aconteceu
Que, num burrinho pela areia fora,
Fugiu
Daquelas mãos de sangue um pequenito
Que o vivo sol da vida acarinhou;
E bastou
Esse palmo de sonho
Para encher este mundo de alegria;
Para crescer, ser Deus;
E meter no inferno o tal das tranças,
Só porque ele não gostava de crianças.
Miguel Torga
Não tenhas medo, ouve:
É um poema
Um misto de oração e de feitiço...
Sem qualquer compromisso,
Ouve-o atentamente,
De coração lavado.
Poderás decorá-lo
E rezá-lo
Ao deitar
Ao levantar,
Ou nas restantes horas de tristeza.
Na segura certeza
De que mal não te faz.
E pode acontecer que te dê paz...
Miguel Torga, Diário XIII
Chove uma grossa chuva inesperada,
Que a tarde não pediu mas agradece.
Chove na rua, já de si molhada
Duma vida que é chuva e não parece.
Chove, grossa e constante,
Uma paz que há-de ser
Uma gota invisível e distante
Na janela, a escorrer...
Miguel Torga, Diário II, 1943
Apetece cantar, mas ninguém canta.
Apetece chorar, mas ninguém chora.
Um fantasma levanta
A mão do medo sobre a nossa hora.
Apetece gritar, mas ninguém grita.
Apetece fugir, mas ninguém foge.
Um fantasma limita
Todo o futuro a este dia de hoje.
Apetece morrer, mas ninguém morre.
Apetece matar, mas ninguém mata.
Um fantasma percorre
Os motins onde a alma se arrebata.
Oh! Maldição do tempo em que vivemos,
Sepultura de grades cinzeladas,
Que deixam ver a vida que não temos
E as angústias paradas!
Miguel Torga, Cântico do Homem
Dies Irae - Dias da Ira, título de um hino do século XIII escrito por Tomás de Celano.
Falta a luz dos teus olhos na paisagem:
O oiro dos restolhos não fulgura.
Os caminhos tropeçam, à procura
Da recta claridade dos teus passos.
Os horizontes, baços,
Muram a tua ausência.
Sem transparência,
O mesmo rio que te reflectiu
Afoga, agora, o teu perfil perdido.
Por te não ver, a vida anoiteceu
À hora em que teria amanhecido.
Miguel Torga, Diário IX
Retrato
Tens nos olhos a luz que me faltava.
Agora posso ver o que não via:
O rosto da alegria
No teu rosto.
vinho ainda a sonhar
Na fervura do mosto,
Não sabes duvidar
Das ilusões.
És a vida que esperas...
Em ti, as estações
São todas primaveras.
Miguel Torga, Diário x, Coimbra, p.83
Viajar, num sentido profundo, é morrer. É deixar de ser manjerico à janela do seu quarto e desfazer-se em espanto, em desilusão, em saudade, em cansaço, em movimento, pelo mundo além.
Miguel Torga, Diário (1937)
Em Portugal, as pessoas são imbecis ou por vocação, ou por coacção, ou por devoção.
Miguel Torga
Somos, socialmente, uma colectividade pacífica de revoltados.
Miguel Torga, Diário IX, ( Chaves,17 de Setembro 1961)
sophia de mello breyner andresen