Eu, Ariadne,
caminho no que teço,
no que vomito
da naúsea de fiar
os novelos exactos.
Myriam Fraga, Labirinto
Segundo a mitologia grega, é filha de Minos, rei de Creta. Apaixonada por Teseu, ajuda-o a descobrir o caminho no labirinto em que se encontrava o Minotauro, oferecendo-lhe um novelo de fio que ele desenrolou, conseguindo regressar.
Ariadne em Náxos- pintura de John William Waterhouse (escola inglesa do século XIX)
O fio de Ariadne atravessa o labirinto da Vida, de cada vida. Um desassossego constituído em Saber como um gigantesco minotauro.
Mas não é fragmentando o homem pelas diversas ciências que apanhamos o Touro.
O fio- incerteza de uma audácia- deve constituir-se em fluídas sugerências conduzindo ao auto-conhecimento.
Já o dissemos, várias vezes, o Homem não se define apenas pela sua racionalidade. Continuamente, procuramos a terra funda dos mitos, remitologizamos o seu sentido para nos adaptarmos ao mundo. Necessidade de uma metafísica inconsciente e sonhadora.
Da leitura de hoje sobrou esta passagem da obra, O Nascimento da Tragédia, de Nietzsche
E, espartilhado por todos os restos do passado, este homem desprovido de mitos permanece eternamente esfomeado, escavando sempre à procura de raízes, nem que para as encontrar tenha de as desenterrar nas mais remotas Antiguidades.
Ícaro sobrevive à sua queda. Em cada um de nós. Nas suas asas, a predição de um futuro, um esgar que sinaliza o caminho para casa.
Em teu ventre arredonda-se um aquário,
onde um pequeno peixe se exercita
a transformar-se em ave, assim que a vida
lhe permita o destino solitário.
Por seus futuros voos de isolado
desde já nos sentimos intranquilos…
E desde já quiseras preveni-lo
das nuvens de que o céu anda agitado.
Ó Ícaro esboçado!, quem soubesse,
em vez deste saber de coisas vagas,
com que cera devera unir-te as asas
- para que nenhum Sol as desfizesse!
David Mourão-Ferreira, in Obra Poética 1948-1988
Mito: palavra de origem grega, mythos, que significa palavra, o que se diz.
Mito de Pandora
Dantes vivia sobre a terra a raça humana, a recato da desgraça e de penoso trabalho e das doenças terríveis, que trazem a morte aos homens.
Mas a mulher, com as suas mãos, ergueu a grande tampa da vasilha e dispersou-os, preparando para a humanidade funestos cuidados. Dentro da vasilha, na morada indestrutível, abaixo do rebordo, ficou apenas a Esperança. Essa não se evolou. Antes já ela tornara a colocar a tampa por desígnios de Zeus, detentor da Égide, que amontoa as nuvens. Mas tristezas aos centos erram entre os homens. Cheia está a terra de desgraças, cheios os mares.
As doenças, umas de dia, outras de noite, visitam à vontade os homens trazendo aos mortais, o mal, em silêncio, pois Zeus, prudente lhes tirou a voz.
E assim não há maneira de evitar os desígnios de Zeus.
Hesíodo, Os Trabalhos e os Dias
Há uma certa perversão, um certo desvio, nesta narrativa mítica. Se a sociedade grega vivia organizada sob as leis imutáveis das Moiras - destino - então que sentido atribuir à esperança?
Sem haver intenção em delimitar os sentidos deste mito - alguns impenetráveis - há, no entanto, a possibilidade de a sua compreensão remeter para a capacidade do homem em superar as suas condições concretas de vida.
A imaginação dos homens recorre a formas múltiplas de se expressar. Uma delas foi a criação e a vivência de mitos.
Permitiram a superação de necessidades e desejos e responderam às grandes questões humanas.
Os mitos narram uma certa verdade que captamos, colectivamente, através dos ritos; corporificam as crenças dos povos e organizam o Caos. São factores de coesão social.
E por que fazem emergir irrupções de sagrado - hierofania - dão existência, por oposição, ao profano.
A saturação de ser - ontofania - que o homem primitivo imprime a todo o real, manifesta de forma absoluta o começo da sua humanização.
Pelos mitos interpretamos e agimos sobre o real; e construimos uma fenomenologia da imaginação.
Voltamos sempre aos mitos e à sua inteligibilidade para completar a realidade.
O mito é o nada que é tudo - Fernando Pessoa
Comecemos com Ícaro, Dédalo, e as famosas asas.
" Vai, vai, disse a ave: o género humano não pode suportar muita realidade."
T.S.Eliot
A racionalidade não basta para definir o homem.
Precisamos da terra profunda dos mitos. Por mais que o homem os recalque ou negue, nunca os poderá esquecer. Por consequência, o homem insere-se no real através de um processo de "remitologização"constante para se adaptar ao mundo circundante e artificial de objectos, símbolos e imagens - ao "mundo humano".
" - E onde se situa essa ilha? - perguntou Ricote.
- Onde? - respondeu Sancho. A duas léguas daqui e chama-se Ilha Baratária.
- Cala-te Sancho - disse Ricote -, que as ilhas estão no mar, não existem ilhas em terra firme."
M. Cervantes
Só o homem pode acreditar em ilhas em terra firme.
sophia de mello breyner andresen