Sobre a lucidez de Saramago; e do riso (secreto e audível) que a envolve.
Penso que não cegamos, penso que estamos cegos. Cegos que vêem, cegos que, vendo, não vêem.
É tão fundo o silêncio entre as estrelas.
Nem o som da palavra se propaga,
nem o canto das aves milagrosas.
Mas, lá, entre as estrelas, onde somos
um astro recriado, é que se ouve
o íntimo rubor que abre as rosas.
José Saramago
Na ilha por vezes habitada
Na ilha por vezes habitada do que somos, há noites,
manhãs e madrugadas em que não precisamos de
morrer.
Então sabemos tudo do que foi e será.
O mundo aparece explicado definitivamente e entra
em nós uma grande serenidade, e dizem-se as
palavras que a significam.
Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas
mãos.
Com doçura.
Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno, a
vontade e os limites.
Podemos então dizer que somos livres, com a paz e o
sorriso de quem se reconhece e viajou à roda do
mundo infatigável, porque mordeu a alma até aos
ossos dela.
Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres
como a água, a pedra e a raiz.
Cada um de nós é por enquanto a vida.
Isso nos baste.
José Saramago
Olharei a tua sombra se não quiseres que te olhe a ti, diz Maria Madalena, e Jesus Cristo responde: quero estar onde a minha sombra estiver, se lá é que estiverem os teus olhos.
Pública, 27.03.11, p. 26
Espaço curto e finito
Oculta consciência de não ser,
Ou de ser num estar que me transcende,
Numa rede de presenças
E ausências,
Numa fuga para o ponto de partida:
Um perto que é tão longe,
Um longe aqui.
Uma ânsia de estar e de temer
A semente que de ser se surpreende,
As pedras que repetem as cadências
Da onda sempre nova e repetida
Que neste espaço curvo vem de ti.
José Saramago
(Duomo de Florença)
Neste mundo de injustiça globalizada, sabe bem recordar as últimas palavras do texto lido por Saramago na cerimónia de encerramento do Fórum Social Mundial 2002. Saramago conta-nos a história do camponês de Florença que no século XVI tocou, melancolicamente, o sino da igreja pela justiça, porque, dizia ele, a Justiça está morta.
Não tenho mais que dizer. Ou sim, apenas uma palavra para pedir um instante de silêncio. O camponês de Florença acaba de subir uma vez mais à torre da igreja, o sino vai tocar. Ouçamo-lo, por favor.
Fotografia de Fernando Ribeiro (2010) Chaves
Há na memória um rio onde navegam
Os barcos da infância, em arcadas
De ramos inquietos que despregam
Sobre as águas as folhas recurvadas.
Há um bater de remos compassado
No silêncio da lisa madrugada,
Ondas brancas se afastam para o lado
Com o rumor da seda amarrotada.
Há um nascer do sol no sítio exacto,
À hora que mais conta duma vida,
Um acordar dos olhos e do tacto,
Um ansiar de sede inextinguida.
Há um retrato de água e de quebranto
Que do fundo rompeu desta memória,
E tudo quanto é rio abre no canto
Que conta do retrato a velha história.
Saramago, Retrato do Poeta quando Jovem, in Os Poemas Possíveis, Caminho, Lisboa, 1981, 3ª edição
Da antropologia à ontologia resvalamos para arquitecturas que definem e delimitam o emaranhado de questões que o Homem coloca sobre si mesmo.
Há espaços, que percorremos, com trilhos para ilhas desconhecidas.
Desconcertantes. Mas abrem possibilidades.
Percorra-as. aqui.
As palavras são boas. As palavras são más.
As palavras ofendem. As palavras pedem desculpa. As palavras queimam.
As palavras acariciam. As palavras são dadas, trocadas, oferecidas, vendidas e inventadas.
As palavras estão ausentes. Algumas palavras sugam-nos, não nos largam: são como carraças: vêm nos livros, nos jornais, nos slogans publicitários, nas legendas dos filmes, nas cartas e nos cartazes. As palavras aconselham, sugerem, insinuam, ordenam, impõem, segregam, eliminam.
São melífluas ou azedas.
O mundo gira sobre palavras lubrificadas com óleo de paciência.
Os cérebros estão cheios de palavras que vivem em boa paz com as suas contrárias e inimigas.
Por isso as pessoas fazem o contrário do que pensam, julgando pensar o que fazem.
(...)
Há também o silêncio.
(...)
Saramago, Deste Mundo e do Outro
Rui Rio recusa o nome de Saramago para uma rua do Porto.
Nada melhor do que um piscar de olhos a Einstein.
É mais fácil desintegrar um átomo do que um preconceito.
Ontem, por volta das 23 horas, lembrei-me de Saramago.
As palavras são boas. As palavras são más. As palavras ofendem. As palavras pedem desculpas. As palavras queimam. As palavras acariciam. As palavras são dadas, trocadas, oferecidas, vendidas e inventadas. As palavras estão ausentes. (...) As palavras aconselham, sugerem, insinuam, ordenam, impõem, segregam, eliminam. São melífluas ou azedas. (...) Há muitas palavras.(...)
A morte faz-me sempre recuar no tempo. E lembrei-me de outro prémio Nobel da Literatura, Ernest Hemingway. Peguei na velha edição "livros do Brasil". Numa espécie de introdução à obra pode ler-se:
(...) A morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do género humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.
Hoje é por ti, José Saramago.
A obra de Saramago contribui para o combate da "cegueira" que atravessa a sociedade portuguesa.
Acho que na sociedade actual nos falta filosofia. Filosofia como espaço, lugar, método de refexão, que pode não ter um objectivo determinado, como a ciência, que avança para satisfazer objectivos.
Falta-nos reflexão, pensar, precisamos do trabalho de pensar, e parece-me que, sem ideias, não vamos a parte nenhuma.
sophia de mello breyner andresen