Deus escreve direito por linhas tortas
Sophia de Mello Breyner Andresen, O Búzio de Cós
Não te ofenderei com poemas
Param os meus olhos quando penso em ti
Não farei do meu remorso um canto
Com árvores e céus mas sem poemas
Demasiado humano para poder ser dito
O teu mundo era simples e difícil
Quotidiano e límpido.
Sophia de Mello Breyner Andresen, Mar Novo, Caminho, pág 35
Era preciso agradecer às flores
Terem guardado em si,
Límpida e pura,
Aquela promessa antiga
Duma manhã futura.
Sophia de Mello Breyner Andresen
Este é o tempo
Este é o tempo
Da selva mais obscura
Até o ar azul se tornou grades
E a luz do sol se tornou impura
Esta é a noite
Densa de chacais
Pesada de amargura
Este é o tempo em que os homens renunciam.
Sophia de Mello Breyner, Mar Novo (1958)
Hoje o dia foi de pegadas impressas sob o rumor do sol. Um dia luminosamente claro, perfeito para folhear Sophia, junto ao mar, e reter vagarosas saudades.
Aqui me sentei quieta
Com as mãos sobre os joelhos
Quieta muda secreta
Passiva como os espelhos
Musa ensina-me o canto
Imanente e latente
Eu quero ouvir devagar
O teu súbito falar
que me foge de repente.
Sophia de Mello Breyner Andresen, Obra Poética III, Caminho, pág. 168
A hora da partida soa quando
Escurece o jardim e o vento passa,
Estala o chão e as portas batem, quando
A noite cada nó em si deslaça.
A hora da partida soa quando
as árvores parecem inspiradas
Como se tudo nelas germinasse.
Soa quando no fundo dos espelhos
Me é estranha e longínqua a minha face
E de mim se desprende a minha vida.
Sophia de Mello Breyner Andresen
Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim.
A tua beleza aumenta quando estamos sós
E tão fundo intimamente a tua voz
Segue o mais secreto bailar do meu sonho
Que momentos há em que eu suponho
Seres um milagre criado só para mim.
Sophia de Mello Breyner Andresen
Cada dia é mais evidente que partimos
Sem nenhum possível regresso no que fomos,
Cada dia as horas se despem mais do alimento:
Não há saudades nem terror que baste.
Sophia de Mello Breyner Andresen
Eu contarei a beleza das estátuas -
Seus gestos imóveis ordenados e frios -
E falarei do rosto dos navios
Sem que ninguém desvende outros segredos
Que nos meus braços correm como rios
E enchem de sangue a ponta dos meus dedos.
Sophia de Mello Breyner Andresen, No tempo divivido (1954)
Chamo-te porque tudo está ainda no princípio
E suportar é o tempo mais comprido.
Peço-te que venhas e me dês a liberdade,
Que um só de Teus olhares me purifique e acabe.
Há muitas coisas que não quero ver.
Peço-te que sejas o presente.
Peço-te que inundes tudo.
E que o Teu reino antes do tempo venha
E se derrame sobre a Terra
Em Primavera feroz precipitado.
Sophia de Mello Breyner Andresen
O que eu queria dizer-te nesta tarde
Nada tem de comum com as gaivotas
Sophia de Mello Breyner Andresen, Obra Poética
Espero sempre por ti o dia inteiro,
Quando na praia sobe, de cinza e oiro,
O nevoeiro
E há em todas as coisas o agoiro
De uma fantástica vinda.
Sophia de Mello Breyner Andresen
Em Sophia, há o mar. Como casa. E lugar de nascimento do ser.
Mostrai-me as anémonas, as medusas e os corais
Do fundo do mar.
Eu nasci há um instante.
Hoje o dia é para a Sophia. Mais as suas belas metáforas.
O Dionysos que dança comigo na vaga não se vende em nenhum
mercado negro
Mas cresce como flor daqueles cujo ser
Sem cessar se busca e se perde se desune e se reúne
E esta é a dança do ser.
O Minotauro
Espero sempre por ti o dia inteiro,
Quando na praia sobe, de cinza e oiro,
O nevoeiro
E há em todas as coisas o agoiro
De uma fantástica vinda
Sophia de Mello Breyner Andresen
De todos os cantos do mundo
Amo com um amor mais forte e mais profundo
Aquela praia extasiada e nua
Onde me uni ao mar, ao vento e à lua.
Sophia de Mello Breyner Andresen
Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua
Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua.
Sophia de Mello Breyner Andresen
Espero sempre por ti o dia inteiro,
Quando na praia sobe, de cinza e oiro,
O nevoeiro
E há em todas as coisas o agoiro
De uma fantástica vinda.
Sophia de Mello Breyner
Casa
Permanece presente como um reino
E atravessa meus sonhos como um rio
Sophia de Mello Breyner Andresen, Obra poética, III, Caminho, p. 53
The River Bennecourt, Monet
Instante
Deixai-me limpo
O ar dos quartos
E liso
O branco das paredes
Deixai-me com as coisas
Fundadas no silêncio.
Sophia de Mello Breyner Andresen
sophia de mello breyner andresen