É no 4.º episódio de As Bacantes que surge o tema da loucura. Ao longo desta cena de enlouquecimento de Penteu, há um jogo dialéctico persistente entre ser e parecer, ver e não ver. Eurípedes apresenta Penteu vestido de ménade e sob os efeitos do delírio dionisíaco que, disfarçado de sacerdote, o irá ridicularizar.
Penteu, tomado de estranha perturbação dos sentidos e com uma sensação patológica de força, julga poder transpor às costas o Citéron. No final do episódio, e neste estado de delírio, Diónisos conduz o rei para as montanhas, onde será morto e dilacerado pelas Bacantes que tão ardentemente deseja observar.
Um diálogo de forte ironia trágica e onde as palavras estão carregadas de duplo sentido.
O episódio tem dado motivo a diversas análises e interpretações psicanalíticas, uma vez que Penteu se disfarça de ménade/bacante/mulher com o propósito de as espiar. Espiar as Bacantes constituía profanação dos mistérios e delito que a pólis grega punia com a morte.
A força da tragédia: a mudança de Penteu de caçador em caçado.
(a partir da leitura do artigo de José Ribeiro Ferreira em "As Bacantes e o Nascimento da Tragédia")
Dioniso
Tu, que de ver o que não deves tão desejoso estás,
e o que é vedado te é solicitas, a ti falo, ó Penteu,
sai do palácio e oferece-te a meus olhos,
envergando uma veste de mulher, de Ménade, de Bacante,
tu, o espia de tua mãe e suas sectárias...
(Entra Penteu, vestido de Bacante e com o tirso na mão.)
Uma das filhas de Cadmo nas feições me pareces
Penteu
Eu estou em crer que vejo dois sóis...
E vejo Tebas, a cidade das sete portas, a dobrar...
A ti, que me conduzes, um touro eu te creio,
e na tua cabeça despontaram chifres...
Já eras dantes uma fera! Em touro te tornastes!
(...)
O Teatro da Rainha estreou no dia 4 de Outubro o espectáculo O Estranho Corpo da Obra.
Estive lá. Entrei sem grandes instrumentos hermenêuticos para decifrar esta excelente viagem aos bastidores da escrita do dramaturgo inglês Martim Crimp. Ainda assim, agarrei-me, de forma consistente, às palavras do encenador Fernando Mora Ramos onde descobri alguns marcadores deste novo território narrativo. Mas sem volta a dar, a escrita permanece sempre um corpo estranho.
Frente ao público, desfilam palavras, tensas, que se transformam em actos vividos e, por eles, acedemos ao mundo conflituoso da classe média burguesa, aos seus narcisismos e frustações. Como refere Mora Ramos, o teatro de Crimp é um verdadeiro Cavalo de Tróia crítico e cruel, cómico, no interior das consciências e do sistema burguês parlamentar" representativo" que serve o financismo. Confirma-se, estamos todos encurraladas: o escritor, o encenador, os actores e cada um dos espectadores. Crimp tem muita razão: Nada expõe com tanta nudez um texto como o palco (...).
Nada expõe com tanta nudez um texto como o palco (...).
Martin Crimp
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O Teatro da Cornucópia tem em cena A Varanda, peça do dramaturgo francês Jean Genet. É considerada uma obra incontornável do teatro moderno. É um texto profundamente filosófico e político, uma metáfora do Mundo, da Cultura Ocidental e do próprio Teatro.
A Varanda é o nome de um Bordel por onde desfilam, e caem, homens comuns transvestidos de figuras notáveis ( ou é ao contrário?), desde o Bispo, o Juíz e o General, entre outras; também o Herói de todas as revoluções, mesmo o das interiores que fervilham em cada ser.
Através duma linguagem cheia de armadilhas, assistimos ao jogo de máscaras entre a Ilusão e o Reflexo, a Mentira e a Verdade, a Vida e a Morte. Um texto que suspende as fronteiras entre o real e o imaginário, uma vez que esbate a capacidade de desocultar a opacidade das diversas máscaras com que a Cultura milenar esconde a pele da Natureza.
A sessão de fotografias é um momento fulcral nesta grande encenação de Luís Miguel Cintra. Os flashes captam, pela reconstrução permanente, a acção histórica e as máquinas desejantes que integram o nosso presente alienado de imagens e reflexos de imagens.
A encenação final do Homem acontece com a mutilação do herói, aquele que pela morte nos dá a face da vida. E assim, por mais dois mil anos, repete-se o simulacro da Verdade, numa lancinante investigação sobre o Ser e sobre a tragicidade do seu desvelamento. Uma autêntica genealogia do Bem e do Mal porque, como nos diz Holderlin, onde está o perigo, cresce também aquilo que salva.
Como síntese do olhar que lançamos da Varanda sobre a Cidade, usemos a expressão do texto- Bela é a máscara.
São quatro horas breves de desintoxicação, como lhe chamou Sartre.
Todas as personagens estão de parabéns. A não perder.
Sófocles, poeta trágico grego (496 - 406 a.C) , traduz nas suas obras uma profunda reflexão sobre a condição humana eternizada através das suas personagens. Penso em Antígona, revisitando o belo poema escrito há mais de vinte e cinco séculos e, no entanto, com uma mensagem intensamente actual. Fala-nos de questões existenciais, daquelas que questionam o sentido da vida num horizonte de finitude e temporalidade. Uma personagem e um poema que se colam ao Ser.
De entre as muitas maravilhas do mundo, nenhuma
É comparável ao Homem.
Percorre o mar encrespado pelo vento sul,
Cruza o abismo bramante das vagas,
Atormenta a Mãe dos deuses, a Terra Soberana,
A Imortal, a Inesgotável,
Ano após ano a revolve
Rasgando sulcos ao ritmo lento das suas mulas.
Os animais emplumados e ligeiros,
As feras selvagens e os habitantes do mar,
A todos captura nas malhas das suas redes,
Este inventor de manhas e ardis!
Atrai às suas armadilhas a caça grossa dos montes,
subjuga e doma o dorso áspero do corcel,
Põe canga no poderoso touro dos montes.
Inventou a palavra, o ágil pensamento,
As leis e os costumes,
Aprendeu a abrigar-se dos grandes frios e das chuvas.
Génio universal que nada surpreende,
Só da morte não ilude a hora certa,
Ainda que por vezes tenha sabido retardá-la.
Senhor de uma inteligência assaz fecunda,
É seduzido tanto pelo bem como pelo mal,
Combinando a justiça eterna e as leis da Terra.
Mesmo o mais poderoso governante é banido da cidade
Se, na sua criminosa audácia, se insurge contra a lei.
Esse, perverso, não terá jamais lugar
Nem no meu lar, nem no meu coração.
O amor é a única loucura de um sábio e a única sabedoria de um tolo.
William Shakespeare
Existem mais coisas no céu e sobre a terra, Horácio, que a sua filosofia possa imaginar.
Shakespeare
Desconfie do mais comum.
Examine o que parece habitual.
Não aceite o óbvio como coisa natural,
pois em tempo de desordem,
de confusão organizada,
de arbitrariedade consciente,
de humanidade desumanizada,
nada deve parecer natural nada deve parecer impossível de mudar.
Estranhe o que não for estranho.
Tome por inexplicável o habitual.
Sinta-se perplexo ante o quotidiano.
Trate de achar um remédio para o abuso,
mas não se esqueça de que o abuso é sempre a regra.
B. Brecht
Fechamos as portas, mas há sempre um rumor que entra.
Como um banquete de segredos; Wikileaks, também.
É tão difícil ser escravo!
Muitas coisas terríveis há,
mas nenhuma mais terrível que o homem.
Sófocles, Antígona
Por que é que esperais?
Que os surdos vos ouçam
e que os nunca-fartos vos dêem alguma coisa!
Que os lobos vos alimentem em vez de vos devorarem!
Que por gentileza os tigres vos convidarão
p`ra lhes arrancardes os dentes!
É por isso que esperais?
Bertolt Brecht
( respigado José Carlos Faria)
Primeiras palavras do discurso pronunciado em 22 de Março de 1968, por ocasião da entrega do Prémio Nacional Austríaco:
Não há nada a exaltar, nada a condenar, nada a acusar, mas há muitas coisas risíveis; tudo é risível quando se pensa na morte.
Thomas Bernhard
O austríaco Thomas Bernhard (1931-1989) foi escritor, poeta e dramaturgo. Inventou a palavra Dramoletes - comparação com a palavra omeleta, refeição rápida - para se referir às suas peças breves. Nesta designação está incluído o conjunto de sete peças curtas onde o tempo é, igualmente, conciso e parado.
O Teatro da Rainha tem em cena Dramoletes 1/ O Coveiro: o título do primeiro dramoletes é Match - retrato do deserto intimista de um casal; Mês de Maria - realce da eficácia do boato, da intriga e da relações xenófobas; Um Morto - exposição da palavra sussurrada, mas visível, sobre o que não deve ser dito - a morte da humanidade, dos seus valores. Em todas estas peças, a técnica da repetição cria densidade e conhecimento no espectador.
Através deste género, Thomas Bernhard desmascara o alemão comum e o nazismo que persistiu nas instituições e nas mentalidades, já em plena democracia.
Grandes interpretações dos actores da Rainha. A não perder.
O dramaturgo grego Sófocles escreveu grandes peças - Ajax, Antígona, Rei Édipo - de dimensão e acção psicológicas. De muitas outras, conhecem-se apenas os títulos e alguns fragmentos.
Introduziu profundas alterações na técnica teatral passando pelo número de coreutas e pelo terceiro actor.
Sófocles reflecte, insistentemente, sobre a condição humana e a busca da felicidade.
A Tragédia Antígona, estreada no século de Péricles, mantém-se actual: Antígona vive a contradição entre obedecer à Lei ou lutar pela Justiça.
O tempo não apaga o fascínio desta personagem.
Hémon - (...) Mas um homem prudente não se envergonha de colher ensinamentos, ou de não ser intransigente em demasia. Vê como, no Inverno, nas margens das torrentes, aumentadas pela chuva, as árvores cedem para salvar os ramos. Se resistissem, acabariam arrancadas pela raiz. Assim sucede ao que, seguro de si, mantém tensa a escota da nave, sem manobra, pois fará o resto da travessia de quilha para o ar. Portanto, não teimes no teu rigor, e admite a possibilidade de mudares de propósito.
Sófocles, Antígona, Editorial Verbo, p 30.
Se julgais que vou fazer a defesa do que para mim é a realidade, muito vos enganais. Sou um actor sem teatro, um fantoche sem cordelinhos, um poeta sem poemas, um amante sem amor. Os próprios piolhos de mim nada pretendem. Pois bem, senhor, eu lanço por terra a minha espada de madeira. Não tenciono defender-me.
Bergman, O Retábulo da Peste in Três Peças em um Acto ( pág 56), Paisagem
Há sempre peças várias em um só acto; com cenário único, facilitando a montagem.
A encenação tem dificuldades menores e subordina-se a um tema circular: a realidade, a própria vida.
Nota finalizante: assistamos, no zimbório, com um ar de circunstância, como convém.
sophia de mello breyner andresen