Mas de onde vem esta manhã que, apesar de tudo,
não nos abandona? Somos privilegiados.
Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem à Índia
Canto I
49
Não é por acaso que não consegues, por mais que tentes,
atingir em cheio o dia - qualquer que ele seja -
como se faz às baleias com um arpão.
Os dias têm um invólucro espesso,
uma armadura do material mais resistente que existe:
tudo aquilo de que não se sabe onde está o centro
está seguro.
Assim são os nossos dias que bem queríamos aniquilar
com um arpão. Baleia absurda, sem corpo,
o tempo.
Uma Viagem à Índia, Gonçalo M. Tavares, Caminho, pág. 46
Canto V - 60
Mas não sejamos pessimistas. Até os pintores
dizem estar a surgir, por estes tempos,
um cesto cheio de novas cores.
Certos tratamentos químicos contemporâneos têm sido
experimentados à luz do sol,
e esta parece finalmente perceber o progresso.
Em pleno século XXI já não fazem sentido astros teimosos
e autónomos.
Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem À Índia, Caminho, pág 229.
Se na água um açúcar fraco se dissolve,
já num corpo de homem as histórias mantêm-se
num sítio do organismo que guarda as narrativas
(vamos supor que existe).
Nada se perde, nada se ganha; tudo é empate
como nos maus jogos. Porém, a memória não é assim
- quem relembra inventa: tudo começa de novo.
Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem à Índia, Caminho, pág. 120
Não procures uma multidão sincera
porque tal não existe.
Quando numerosos, os homens, os animais,
as plantas, as pedras e até as máquinas
perdem a higiene do raciocínio individual;
e, se abrem a janela que dá para o jardim,
é para cuspir, nunca para te dizer adeus.
Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem à Índia, Caminho, pp 84-85
Porque o bosque é tranquilo,
(como se tivesse sido organizado por
um poeta chinês antigo.) Ramos castanhos
recebem o vento incolor com a alegria
da tela que recebe as mais intensas tintas.
Vento tão lento que parece um provérbio natural. Os instantes existem,
mas parecem recuperáveis. Nem o tempo se perde, ali,
onde nenhum ruído da cidade entra.
Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem à Índia, Caminho, p.386
O medo, neste século, já não é um produto artesanal.
Os aviões bombardeiros
- ou, em tempo de paz, as falências imprevistas-
impressionam pela tecnologia posta em acção.
Hoje, passa-se fome de modo bem mais moderno
do que no século XVIII, por exemplo.
Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem à Índia, Caminho, p. 155
De que é feito um país cobarde?
Bloom responde: é feito de muitos homens corajosos.
Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem à Índia, Caminho, p177
Um canto - tal como um conto -, pode ser sempre re-contado. O canto camoniano permite leituras marginais face à matéria épica narrada. O Texto de Gonçalo M. Tavares envolve o pensamento no mesmo exercício.
A questão é que um país já nem
se preocupa se fabrica ou não poetas.
E até a própria fábrica não tolera restos:
toda a matéria deverá ser aproveitada,
como uma prostituta hábil aproveita todos os recantos
do seu corpo. Os países perderam estilo,
ganharam accionistas.
Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem à Índia, Prefácio de E. Lourenço, Caminho, 1ª edição, canto IV, p 175
A propósito do livro de Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem à Índia, Eduardo Lourenço, no Prefácio, diz:
“Uma Viagem à Índia, com consciência aguda da sua ficcionalidade, navega e vive entre os ecos de mil textos-objecto do nosso imaginário de leitores. Como todos os grandes livros, e este é um deles." E "que todas as viagens são sempre um regresso ao passado de onde nunca saímos".
Gonçalo M. Tavares parte de um grande objecto ficcional e relata-nos a viagem existencial de um homem.
Todas as viagens são um regresso à Índia. À nossa infância.
A ler.
sophia de mello breyner andresen