As cores, mesmo pálidas, fazem-me feliz.
Meus olhos são capazes de tirar
fotografias. Sempre que me permito
ou com saliente tremura, ordeno, sinto,
Tudo o que cabe no meu campo de visão
- Uma cena de interior, folhas de nogueira, esbeltos
Estiletes de gélido estilicídio -
Permanece em fixação intraciliar
E duram um bom par de horas
E enquanto isso bastar-me-á
Cerrar os olhos e ver as folhas,
Ou a cena de interior, ou os troféus de água.
Vladimir Nabokov, Fogo Pálido, Canto Primeiro
Diz-se, Lolita é o romance de Vladimir Nabokov. É. Deu-lhe o reconhecimento merecido. Mas intrigante e desconcertante é acompanhar as satíricas aventuras de Fogo Pálido. O texto - hipertexto - é um poema em 999 versos, seguido de uma série de comentários ao próprio poema. Na nota bibliográfica da edição que leio, Eduardo Prado Coelho refere:
Em Fogo Pálido, trata-se também de um jogo narrativo: partindo do comentário supostamente universitário de um longo poema vemos erguer-se um poderoso espaço de ficção que nos perturba, arrasta e permanentemente nos desconcerta.
Um jogo hermético que se constitui em paródia. Apesar de o Canto Dois ser o mais apreciado, transcrevo o início do Canto Um. Pelos pássaros.
Fui a sombra do ampelis despenhando-se
No céu falso da vidraça;
Fui a nódoa de um tufo de cinzas - e
Vivi sempre, fluí, no céu reflectido.
E também por dentro me dupliquei,
A minha luz, maçã pousada:
Desvelando a noite, deixarei o vidrado negro
Suspender os móveis acima do solo
E que delícia o nevão que veio cobrir
O meu pedaço de terra, erguendo-se
Levando cama e cadeira a pairar
Sobre a neve lá fora, na terra de cristal!
A neve que cai: cada floco que paira
Lento e informe, opaco e corredio,
Branco sujo na placidez do dia
E os lariços abstractos à neutral luz.
E então os dois azuis graduais
Quando a noite une o olhar ao visto,
E de manhã, diamantes de gelo
Exprimindo espanto: que esporas cruzaram
Daqui para ali, a folha nua do caminho?
Ler daqui para ali no código do inverno:
Um ponto, seta de regresso...Pé de faisão
De anilhada beleza, tetraz sublime
Que encontra o seu oriente no meu quintal?
(...)
sophia de mello breyner andresen